sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A PAIXÃO SEGUNDO CLARICE LISPECTOR

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres ressalta a perenidade do sentimento.
                                                                                                              Inês Pedrosa
As frases de Clarice são relâmpagos que iluminam a mais bruta e profunda matéria do humano. Todos os seus livros são prodigiosos, no sentido literal: a cada releitura trazem novas descobertas – e, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é necessário ser-se “intelectual” para aceder a Clarice. É necessário, sim, ser-se uma coisa mais difícil: livre, como ela foi. Essa liberdade exige inocência, a capacidade de olhar para o já visto e já nomeado como se não o conhecêssemos. O dom da sua escrita é o de iluminar os objetos e os seres mais simples, interrogando-os para os entender, sem juízos prévios. A força da sua voz advém dessa inocência inexpugnável, valente, ilimitadamente ousada. Escolhi Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres porque é o mais perfeito e feliz livro que conheço sobre a paixão como conhecimento em crescendo e intensidade física que perdura – contra séculos de literatura que choram a sua tragédia e brevidade. Este romance não começa nem acaba: abre com uma vírgula e uma mulher excessivamente ocupada, termina com dois pontos depois dos quais Ulisses continuaria a dizer a Loreley o que estava a pensar. Clarice diz-nos que a conversa íntima entre dois amantes é infinita e articular – e diz-nos simultaneamente que o que se segue será da nossa responsabilidade, o nosso livro, nosso romance. Se todos podemos ser Ulisses e Loreley, cada um o será a seu modo – essa mistura de individualidade e impessoalidade é a pedra de toque da modernidade global e fragmentária em que vivemos, e é também a qualidade suprema da escrita de Clarice: tudo aquilo de que ela fala nos rasga as entranhas, por muito estranho que pareça – e nessa estranheza estranhada a nossa dor são também a descoberta do mundo.
A vírgula, acumulativa, digressiva, buliçosa, sinaliza a mulher. Os dois pontos, defensivos, reflexivos, narcísicos, sinalizam o homem. O que se passa durante o romance é a aproximação entre esses dois mundos. A relação entre Loreley e Ulisses faz-se de silêncio, esperas, um trajeto de noite e solidão em que tudo o que ambos sabiam antes de se encontrarem se transfira e prepara para a sabedoria maior do amor. O erotismo cresce de um modo sinfônico perfeitamente orquestrado, até esse clímax em que os amantes “se amaram tão profundamente que tiveram medo da própria grandeza deles”. O que é raro e belo é que continuam ainda a amar-se, para lá da página e da pontuação.

Quem sou eu

Minha foto
Lins, São Paulo, Brazil
Uma pessoa comum...