A GRAÇA DO CONTRASTE
É possível realçar situações conflitantes por meio de oximoros, a criação de harmonia entre termos contraditórios, como "estridente silêncio"
Em um artigo da revista Veja, aparece uma expressão, em princípio, estranha:
"Nas últimas semanas, o arcabouço que sustentava os interesses dos EUA numa região vital como o Oriente Médio simplesmente se desmanchou. O governo americano acompanhou tudo com estridente silêncio"(23/3/2011, p.65).
A construção "estridente silêncio" parece parodoxal, pois o silêncio é o contrário da estridência (= forte ruído; estrépido). No entanto, quando refletimos melhor, verificamos que nela se harmonizam termos contraditórios com a finalidade de expressar, de modo mais adequado, uma situação conflitante. Com efeito, no exemplo acima, o que se pretende dizer é que os Estados Unidos se manifestam sobre todos os acontecimentos do mundo e que, portanto, seu silêncio inabitual chamou mais a atenção do que qualquer pronunciamento.
OXIMORO - trata-se da figura de retórica denominada oximoro, em que se combinam numa mesma expressão elementos linguísticos semanticamente opostos. A palavra oximoro é formada de dois termos gregos: oxýs, que significa "agudo", "penetrante", "inteligente", "que compreende rapidamente", e "morós" que quer dizer "tolo", "estúpido", "sem inteligência". Como se vê, o vocábulo é formado de dois elementos contraditórios, o que significa que a palavra "oximoro" é um oximoro. Cabe ainda lembrar que, embora a pronúncia mais difundida seja com a tônica na antepenúltima sílaba, isto é, oxímoro, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa só reconhece as formas oximoro (paroxítona) e oximóron. Para acomodar a contradição expresssa no oximoro, o que se faz é restringir o sentido de um dos elementos de forma a poder aplicar a ele o termo antitético. No exemplo acima, silêncio deixa de significar "estado de quem se cala ou se abstém de falar" e passa a denotar uma maneira de pronunciar-se sobre alguma coisa. O oximoro tem a finalidade de apreender as aporias, os paradoxos, as incoerências de uma dada realidade. Ao provocar um estranhamento, ele torna o sentido mais profundo, mais verdadeiro, mais intenso.
DEFINIÇÃO - normalmente, essa figura é construída, expressa por um atributo, um adjunto adverbial ou um predicado, àquele que a porta, manifestado por um substantivo, um verbo ou adjetivo, um sujeito, ou estabelecendo uma relação entre duas qualidades conflitantes. No livro Barroco tropical, de José Eduardo Agualusa (Cia. das Letras, 2009), há uma personagem, o General Benigno dos Anjos Negreiros, sogro do narrador, que tem prazer na construção de oximoros. O narrador também tem o gosto do paradoxo e, por isso, essa figura aparece muitas vezes ao longo da narrativa. Vejamos alguns casos:
a) "A inteligência Militar, perdoe-me o oximoro, teve um papel relevante na derrota de nosso fraterno inimigo" (p.54): há uma contradição entre o substantivo inimigo e seu atributo fraterno; faz-se também uma ironia, ao considerar que o adjetivo militar é incompatível com o substantivo sinteligência;
b) "Repare no contraste! - gemeu Mouche. - Neste país até o futuro é arcaico." (p.60): há um conflito semântico entre o sujeito futuro e o predicado é arcaico;
c) "Tudo tão falso e tão ingenuamente autêntico - poderia escrever, para, uma vez mais, agradar ao meu sogro: "falsamente verdadeiro" - que me vieram lágrimas aos olhos de pura emoção" (p.57): o adjetivo verdadeiro é o oposto do advérbio falsamente; além disso, as qualidades expressas pelos adjetivos falso e autêntico são antitéticas. Também pode construir-se um oximoro, postulando a existência e a inexistência ao mesmo tempo: um poema de Cabral traz o título O nada que é.
CONSTRUÇÕES - essa figura serve para expressar a complexidade da realidade. Agualusa, ao descrever Benigno, diz: Benigno é, quase sempre, muito simpático. Acho-o de uma "simpatia assustadora" (p. 87). Por outro lado, quando se considera contraditória uma combinação, que une dois termos em princípio não opostos, esse pretendido oximoro serve para determinar uma visão sobre a realidade. Ainda em Agualusa encontra-se: - Conheço. Ainda hoje encontrei uma dessas lamentáveis incongruências, um político honesto - olhe, ofereço-lhe o oximoro, é para sua coleção (p.276).
Normalmente, um oximoro é construído com dois termos: "Evidente que há mérito do Coritiba (...). Tocou fácil a bola, envolveu o Palmeiras com sofisticada simplicidade, com perdão da contradição" (Antero Greco, Jogo de criança. In: O Estado de S. Paulo, 6/5/2011, E2). Entretanto, essa figura pode ser erigida em princípio de construção do texto, como acontece neste soneto de
Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
um nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É um querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo
Amor?
RENÚNCIA - o poeta tenta, nos onze primeiros versos (os dos dois quartetos e os do primeiro terceto), definir o amor. Cada verso tem a estrutura de uma definição (= amor) + verbo de ligação ( = é) + conteúdo definicional.
Esse conteúdo é uma metáfora, construída primeiro com substantivos concretos (fogo e ferida), depois com nomes abstratos (contentamento e dor), em seguida com infinitivos substantivados (um não querer, etc.), a seguir com verbos (servir e ter). Cada uma dessas definições encerra um oximoro: por exemplo, amor é fogo que arde (=visível) sem se ver (=invisível); é um não querer (=desprendimento) mais do que bem querer (=sôfrego); é andar solitário (=isolamento) entre a gente (=acompanhado); é um nunca contentar-se (= insatisfação) de contente (=satisfação); é cuidar que ganha (= enganador) em se perder (= malogro); é um querer estar preso(=limitação) por vontade (= deliberação); é servir o vencedor (= devoção) a quem vence (=imerecida); é ter lealdade (=fidelidade) com quem nos mata (=indevida). Como uma definição não pode conter contradição, cada uma delas abandonada. No último terceto, o poeta renuncia a definir o amor e expõe sua perplexidade numa interrogação: por que os homens buscam tanto esse sentimento se ele é algo contraditório? O poema começa com a palavra "amor" e termina com ela. É como se, ao final da experiência de buscar apreender o sentido dessa paixão, o poeta concluísse: amor é amor. São os oximoros que permitem deixar patente a impossibilidade de precisar o sentimento amoroso: o poema mostra que o amor é da ordem do sentimento e não do domínio da compreensão.
Há também oximoros visuais. No site Retórica e publicidade, apresenta-se a peça publicitária da Pirelli como exemplo de oximoro. Nele unem-se os termos da oposição masculino vs. feminino, explorando os estereótipos ligados a esses universos, principalmente a força e a graça, a sofisticação e a simplicidade.
José Luiz Fiorin. Língua Portuguesa. ano 7. nº77. março de 2012