O DESVIO ÉTICO DO GERUNDISMO
(Luiz Costa Pereira Junior)
Há implicações éticas no vício de linguagem. O uso excessivo e desnecessário do gerúndio é conhecido como endorreia, cuja forma popular é a construção "vou estar + gerúndio", uma perífrase (locução formada por dois ou três verbos). A locução em si é legítima, quando comunica a ideia de uma ação futura que ocorrerá no momento de outra ou sequenciada. As sentenças "vou estar dormindo na hora do jogo" ou "vou estar vendo o jogo quando você estiver assistindo à novela" são adequadas ao sistema da língua, assim como em verbos que indiquem processo: "amanhã vai estar chovendo" ou ato contínuo: "vou estar trabalhando das 8h às 18h".
Aquilo a que nos acostumamos a chamar de gerundismo se dá quando não queremos comunicar essa ideia de eventos ou ações simultâneas, mas antes falar de ação pontual, em que a duração não é preocupação dominante. "Vou falar" narra algo que vai ocorrer a partir de agora. "Vou estar falando" se refere a um futuro em andamento. É inadequado usar uma forma verbal com valor de outra - falar de ação isolada, que se encerraria num só ato, como se fosse contínua. Quando respondemos ao telefone "vou estar passando o recado" fazemos o recado, que potencialmente tem tudo para ser dado, não ter mais prazo de validade. O vício aqui isenta a pessoa de responsabilidade sobre o que prometeu fazer. É antes de tudo um desvio ético.
A TENTAÇÃO DO PRECIOSISMO
Termos afetados substituem outros mais simples em ramos como Direito
O Supremo Tribunal Federal manteve o poder de investigação do Conselho Nacional de Justiça no mês passado. A decisão, que garante a atuação de um órgão que tem exposto as mazelas do judiciário brasileiro, vem na esteira de uma série de denúncias envolvendo a Magistratura. As acusações se avolumam, de decisões suspeitas de anulações de processos como endinheirados, de pagamentos e movimentações bancárias duvidosos a denúncias de nepotismo e hipervalorização de salários.
Um antigo inimigo da Justiça tem se somado a essa "proemial delatória" (denúncia), à lentidão das sentenças e à estrutura arcaica dos tribunais. É o preciosismo, o uso de um português arrevesado, palavrório de raciocínios labirínticos e expressões pedantes.
Correção de Rota
Preciosismo é a afetação, no requinte excessivo do fraseado, no uso de palavras incomuns, perífrases. Não é exclusividade do mundo do Direito. mas costuma aparecer em peças jurídicas às vezes involuntariamente engraçadas .
A adoção de uma linguagem mais coloquial pelos profissionais da advocacia tem sido dada em relação direta com a qualidade da produção do Direito e a velocidade no atendimento à população. Um vocabulário mais simples, direto e objetivo pode aproximar a sociedade da Justiça.
Jargão
Toda atividade tem seu jargão. O que é nocivo é o uso crônico de palavras ou expressões rebuscadas quando há outras que dizem o mesmo. Se a linguagem técnica tem de ser exata, não pode ser ambígua nem conotativa. Mas vocábulos rebuscados podem ser substituídos por palavras mais simples, sem prejuízo do significado.
Os defensores do juridiquês acreditam que simplificar a linguagem é uma falsa questão, pois quem mantém relações com a Justiça é o advogado, não seu cliente. Com isso, o jargão se radicaliza, até por necessidade de legitimação.
Atacar o preciosismo é, portanto, um modo de atacar a disfunção básica do sistema, do mesmo modo que medidas como a manutenção do poder de investigação do CNJ.
PRECIOSISMOS
Abroquelar (fundamentar)
Cátula chéquica (folha de cheque)
Estipêndio funcional (salário)
Areólogo (tribunal)
Consorte supérstite (viúvo-a)
Fulcro (fundamento)
Auguer (aluguel)
Cúspide (cume, vértice, píncaro)
Indigitado (réu)
Avença (concórdia)
Ergástulo público (cadeia)
Pretório (tribunal)
VÍCIOS SONOROS
Vícios sonoros são, provavelmente, os mais fáceis de identificar, pois muitas vezes "doem no ouvido", o que não significa que sejam igualmente fáceis de brecar. Evitá-los, no fundo, não passa de polidez sintática: a arte de não chamar mais atenção à forma sonora do que ao conteúdo textual do que se diz.
CACOFONIA
Do grego Kakophonia (voz ou som desagradável). Consiste na junção de duas palavras que formam outra de efeito acústico inconveniente ou desagradável:
"Não tinha ilusões acerca dela."
"Não se trata de ter fé de mais ou fé de menos, mas de ter esperança."
"Manteve uma mão livre."
COLISÃO
Do latim collisione, de collidere (bater contra), o vício da colisão consiste numa sequência desagradável de palavras formadas por constantes iguais ou semelhantes, em particular quando o autor da sentença não tenha intenção de obter efeito estilístico.
É uma aliteração involuntária e infeliz.
A colisão difere da cacofonia porque não resulta em palavra de efeito acústico invonveniente ou desagradável.
"Quer quebrar coco com a cabeça."
"Sofro sua ausência sem cessar."
"Pó-pa-tapá-taio", como pediu o gorato na farmácia do interior, tentando dizer 'pó para tapar talho."
Ele se referiu à velha sulfa usada então para curar ferimentos, corte, "talhos".
ECO
Efeito acústico em geral desagradável da repetição de fonemas iguais, como sequência de "-ãos", "-mentes" e "-menos": "Não dão explicação para a demissão do João" (Aurélio).
"Lamento seu abatimento, mas no momento não temos elementos para dar-lhe sustento."
EQUÍVOCOS EXISTENTES
Abóboda (abóbada)
Rúbrica (rubrica)
Limpesa (limpeza)
Acróbata (acrobata)
Circuíto (circuito)
Cidadões (cidadãos)
Exijimos (exigimos)
Misântropo (misantropo)
Indentidade (identidade)
Mortandela (mortadela)
Quiz (quis)
Obseçao (obsessão)
Mendingo (mendigo)
Puzer (puser)
Perca (perda)
AMBIGUIDADE DESVIA A ATENÇÃO
Do latim ambiguitate (incerteza, obscuridade), é representata pela falta de clareza e a dualidade de sentido:
"Entrou no apartamento pegando fogo", como publicou no jornal em tragédia recente.
É mais apropriado supor que o apartamento é que estava em chamas e não a pessoa, mas o enunciado é ruim por não ser impossível que alguém estivesse em chamas reais ou figuradas. Mais claro: "Entrou no apartemanto que pegava fogo".
Em outro título:
"Britânico confessa assassinato da sogra durante oração".
Teria ele matado a pobre sogra que orava? Não. A polícia instalou gravador no carrto do suspeito que, em oração, pediu perdãqo a Deus por ter matado a sogra. Com clareza: "Em oração, britânico confessa ter matado a sogra."
"Peguei o ônibus correndo." Quem estava a correr?
"Luís elogiou Edgar em sua casa." Casa de quem?
(Língua Portuguesa. ano 7.nº 77 março de 2012)