OS MÉDICOS E A LÍNGUA
Recebo um telefonema da querida jornalista Graziela Azevedo, da TV Globo. "Os médicos que consultei dizem que o certo é 'malformação', mas preciso ouvir o outro lado", disse Graziela, fiel aos princípios do jornalista. "O que diz o professor?"
O termo vernacular é "má-formação". O adjetivo "má", feminino de "mau", modifica o substantivo feminino "formação". O hífen se explica pela unidade de sentido da expressão. E "malformação"? Os dicionários e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, registram essa forma, que, na verdade, é mero aportuguesamento do termo francês malformation. É claro que sugeri a Graziela o emprego da forma vernácula.
No verbeto "malformação", o Novo Aurélio Século XXI limita-se - sabiamente - a um seco "V.má-formação", ou seja, manda que o consulente procure o termo vernáculo. Muitos médicos, no entanto, parecem preferir a forma espúria.
Outro caso digno de nota é o de "cateter", que como indica a falta de acento, é oxítona, isto é, lê-se "catetér". Entre os médicos, é dominante a pronúncia paroxítona ("catéter"), que os dicionários e o Vocabulário não recenhecem. Dia desses, tratei do caso na televisão. Indevidamente, generalizei ao afirmar que os médicos dizem "catéter". Não foram poucos os discípulos de Hipócrates que me escreveram para protestar, fazendo questão de dizer que não pertencem ao time do "catéter".
Já o caso de "líquor/liquor" é diferente. O Novo Aurélio insiste em reconhecer apenas a forma "liquor", sem acento, ou seja, com tonacidade no "o", que tem timbre fechado. A essa forma, culta e correta, acrescenta-se a preferida pelos médicos, "líquor", registrada pelo Vocabulário (da Academia), que tem força de lei.
A dupla "cancerígeno/canceroso" também merece comentário. A doença do governador Mário Covas [morto em março de 2001] fez muita gente usar as duas palavras como se fossem equivalentes. Não são, informam os dicionários. Em "cancerígeno", há o elemento grego geno, que, entre tantos significados, tem o de "que produz", "que gera". É cancerígeno o que é capaz de produzir câncer. O cigarro e um tal fungo encontrado recentemenete no amendoim são cancerígenos. Algumas pessoas - muitas delas públicas - são cancerígenas. Espalham a metástase e praticam o mal à ufa por onde passam, sobretudo na administração da coisa pública. "Canceroso" significa "da natureza do câncer", "aquele quer tem câncer". Teoricamente, as células em que há câncer são "cancerosas", mas não é raro que se diga que são "cancerígenas". Mesmo entre os médicos, é indiscriminado o uso de "canceroso" e "cancerígeno". Pelo jeito, vão acabar virando (ou já viraram) sinônimos.
Bem, fiz minha parte. Se você tiver coragem de sair por aí dizendo "cateter" como mandam os dicionários ("catetér"), ou "liquor", com tonicidade no "o", ou ainda "má-formação", talvez tenha de se explicar. É isso.
( Inculta e Bela 4 - Pasquale Cipro Neto - 18/01/01)