segunda-feira, 23 de agosto de 2010
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
A ARTE DE CAMINHAR
Desde a antiguidade movimentar o corpo ajuda as pessoas a pensar, tomar decisões e expressar indignação; na literatura artistas e apaixonados são andarilhos
A consciência da necessidade de praticar exercícios físicos é recente. "No começo, era o pé", diz o antropólogo Marvin Harris. O pé, não a mão. A mão nos fez humanos – mas antes de sermos humanos somos parte do reino animal, e o nosso corpo precisa atender às necessidades que os animais enfrentam, entre elas a do deslocamento. O ser humano evoluiu, tronou-se bípede, mas continuou caminhando. E passou a usar a caminhada para outros fins que não o de chegar a um lugar específico: o de buscar determinada coisa. Praticar exercícios físicos é algo relativamente recente, mesmo porque, no passado, o sedentarismo era a exceção antes que a regra; caçadores, agricultores, trabalhadores em geral jamais pensariam nisso. Mas muito cedo o ato de caminhar adquiriu um significado psicológico, simbólico. O protesto político muitas vezes se fez, e ainda se faz, sob a forma de marchas, de caminhadas; foi o caso da Marcha dos 100 Mil (1968), um dos primeiros protestos organizados no Brasil. Os filósofos gregos muitas vezes ensinavam a seus discípulos caminhando. "Levanta-se, toma teu leito e anda", diz o Evangelho (João, 5:8), ou seja, vá em busca de seu destino, de seus objetivos. E Santo Agostinho cunhou uma expressão famosa: Solvitur ambulando, caminhar resolve (os problemas, as dúvidas). Por quê?
No livro Wanderlust: a history of walking (A ânsia de vagar: uma história da caminhada), de 2000, Rebecca Solnit diz que andar permite "conhecer o mundo através do corpo", ou, nas palavras do poeta modernista Wallace Stevens (1879-1955): "Eu sou o mundo no qual caminho". Trata-se, pois, de uma experiência cognitiva, muito necessária nesses tempos em que as pessoas se deslocam, sobretudo utilizando carros, trens, aviões. Mas caminhar também envolve um processo de autoconhecimento, quando não de inspiração. "Os grandes pensamentos resultam da caminhada", diz o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), uma ideia que Raymond Inmon expressa de forma mais poética: "Os anjos sussurram para aqueles que caminham". O escritor francês Anatole France (1844-1924) faz uma comparação interessante: "É bom colecionar coisas, diz ele, mas é melhor caminhar". Porque caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas que a gente vê, as coisas que a gente pensa". Esse processo é facilitado pela renovação da paisagem, seja ela rural ou urbana, e pelo próprio automatismo do ato de caminhar. Não é de admirar, portanto, que muitos escritores tenham abordado o tema da caminhada. Foi o caso do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), figura marcante do Iluminismo francês e precursor do romantismo – os românticos, sobretudo os alemães, eram grandes andarilhos. Em suas Confissões, disse Rousseau: "Só consigo meditar quando caminho. "Minha mente só trabalha junto com minhas pernas". À obra (publicada postumamente) que resume muito de sua biografia e de sua filosofia, Rousseau deu o título de Os devaneios do caminhante solitário (Les rêveries du promeneur solitaire). Os dez capítulos são denominados promenades (caminhadas).
Finalmente, temos um termo analisado tanto pelo poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) como pelo escritor alemão Walter Benjamin (1892-1940). Trata-se de flâneur, que vem do verbo flâner, vagar (em português temos o galicismo flanar). O flâneur, do qual Benjamin era um exemplo, vagava por Paris, observando o que se passava a seu redor, num claro desafio à moral burguesa então vigente, que via isso como vagabundagem. Uma vagabundagem da qual resultaram, contudo, textos admiráveis. Caminhar, como diz o escritor americano contemporâneo Gary Snyder, é a grande aventura.
(Moacyr Scliar)
BOTOX DIMINUI ENXAQUECA
Cientistas do Hospital Universitário de Essen, na Alemanha, descobriram um novo campo de aplicação para a toxina botulínica. Segundo eles, o botox, como é conhecida a substância utilizada em cirurgias plásticas, reduz a quantidade de ataques de dores de cabeça em pessoas que sofrem de enxaqueca crônica. Em um estudo realizado com 1.400 pacientes que sofriam com o problema, o preparado foi invejado na nuca e nos músculos faciais. O neurologista Hans-Christoph Diener, responsável pelo estudo, comparou o efeito da toxina com o de um preparado inócuo aplicado no grupo-controle. Os resultados mostram que o placebo reduziu a quantidade de ataques de enxaqueca no decorrer do tratamento de quatro semanas – apenas a crença em uma possível cura, portanto, já atenuou as dores dos pacientes. No entanto, o botox teve um efeito claramente melhor. No decorrer de seis meses, os pacientes ficaram nove dias a mais, por mês, sem dores.
Há algum tempo, o botox vem se destacando como importante aliado no tratamento de outras doenças, como na diminuição de espasmos e posturas incorretas em determinados distúrbios de movimento. Mais testes estão sendo realizados para demonstrar o quão eficaz a substância pode ser no tratamento de enxaqueca.
(Mente e cérebro. Ano XVII. Nº209)
sábado, 7 de agosto de 2010
EDUCAÇÃO SENTIMENTAL
Maria Rita Kehl
"Eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora, agora." (Fernando Pessoa)
Se o sonho realiza desejos, o que leva alguém a sonhar com períodos difíceis do passado? Na Interpretação dos Sonhos, Freud formula a pergunta apenas para apresentar sua conclusão: "Naqueles tempos duros eu possuía algo melhor que tudo: a juventude." Paradoxal, o desejo de juventude. Só a desejamos depois de perdê-la para sempre.
"Tenho saudade do corpo jovem", diz Caetano, no presente, ao entrevistador do documentário Uma Noite em 1967 que lhe pergunta se tem saudades da época dos Festivais da MPB. "Só sinto falta daquela alegria que vinha do corpo." Caetano é o único que confessa nostalgia. Os outros compositores, entrevistados no filme que estreou em São Paulo na semana passada, não falam com saudades dos festivais da TV Record. "Eu estava apavorado naquela final", revela Gilberto Gil. "Não sei como as câmeras captaram a imagem daquele fantasma que eu era no palco." Chico Buarque, aos 23 anos, sentia-se velho diante dos baianos por conta do smoking careta que tinha alugado para usar no palco. E Edu Lobo, o vencedor da noite, traz lembranças de uma fase angustiada: "Naquele tempo eu vivia preocupado. Não sabia se ia dar certo na carreira de compositor." A tenra idade pesa.
O filme de Ricardo Calil e Renato Terra tem sido bem recebido por quem tem hoje mais de 50 anos. Desperta saudades. E assombro: de onde surgiu aquela espantosa geração de meninos compositores? Como explicar a concentração de poetas e músicos talentosos revelados nos quatro grandes festivais, desde a Excelsior de 1965 até o primeiro da Globo, em 1968? Eles fizeram, mais que qualquer escritor, a educação sentimental da minha geração.
Pena que Uma Noite em 1967 seja um documentário tão preguiçoso. Tendo em mãos o precioso arquivo da última noite do festival daquele ano, os diretores concentraram-se em intercalar as cenas gravadas ao vivo no Teatro Paramount em São Paulo com as entrevistas atuais concedidas por músicos, organizadores e jornalistas presentes na premiação. Faltam informações sobre o evento, como, por exemplo, o nome dos outros finalistas e das outras canções concorrentes. Entre 12 selecionados, o filme concentra-se nos 5 vencedores, mais a cena completa do massacre público de Sérgio Ricardo, politicamente incorretíssimo para os padrões atuais. Não há nenhuma pesquisa sobre os festivais anteriores, sobre o Brasil da época, sobre de onde vieram os vencedores de 67. De que fontes brotaram as águas que explodiram em tamanha fervura?
Mas as imagens da época têm o mérito de revelar como estamos distantes da década de 1960. Tudo era um pouco mais pobre, mais chinfrim, muito mais improvisado e também mais vivo e espontâneo do que o que veio a seguir. A plateia que lotava o teatro além dos limites de segurança era indomável. Os aplausos e principalmente as vaias eram captados por um microfone pendurado pelo fio sobre as cabeças do público. A qualidade do som era sofrível; as canções, os arranjos e a interpretação, empolgantes. Nunca mais a televisão brasileira exibiu uma mistura tão bem-sucedida e tão inesperada de genialidade, diante da qual o espectador contemporâneo nem liga para a precariedade da técnica.
E como os corpos eram diferentes! Todos magérrimos sem nunca ter passado por uma academia. Ombros estreitos, braços finos. Magreza da idade. Quem se importava com isso? A plateia parecia estar ali para fazer política onde ainda não era proibido. Tudo era pretexto para se marcar posição. Tratava-se de apoiar com fervor a melhor " música de festival".
A vencedora Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, trouxe a combinação perfeita para empolgar o público. "Era um, era dois, era cem": diante da multidão o violeiro deve dizer logo o que tem pra contar. Chegou seu momento. O tom desafiador, a alegoria sobre "a morte ao redor, mundo inteiro", o desejo de "ver o tempo mudado" – e mais a viola como objeto perdido, evocado pelo "quem me dera agora" do refrão: tudo fazia de Ponteio o meio ideal para promover um gozo estético e político, dentro dos limites tolerados pelo regime e pela direção da TV Record. A vitória de Ponteio parecia a realização do "dia que virá" aqui e agora, transmitida ao vivo pela tevê.
A revelação mais importante do documentário é que, na verdade, nada era tão espontâneo quanto parecia. Assim como a passeata nacionalista contra o uso da guitarra na MPB foi organizada pela própria emissora como estratégia de marketing para promover o festival, o diretor Paulo Machado de Carvalho Filho revela em entrevista que também as vaias e a radicalização da torcida nas finais foram planejados para fazer da disputa um grande acontecimento. Era uma estratégia selvagem de marketing. Nós éramos os figurantes vestidos de leões na arena romana armada pela direção artística da emissora – verdadeiros inocentes úteis da incipiente indústria do espetáculo no Brasil.
Então, a partir de 1968 a TV se profissionalizou e a Globo acabou com a farra. Como se prenunciasse o AI-5, que calou e exilou os melhores artistas, a emissora que viria a se tornar a queridinha dos militares engessou o formato, nos solenes e tediosos Festivais Internacionais da Canção. Que mesmo assim nos deram a belíssima Sabiá. Mas desconfio que Chico e Tom não precisavam do pretexto de nenhum festival para compor a mais bela canção do exílio que o País já mereceu.
O Estado de São Paulo. 17 de agosto de 2010. C2-música
domingo, 1 de agosto de 2010
(Mente e Cérebro. Ano XVII. nº210)