Era uma vez...
...palavrinhas mágicas, capazes de fazer os sentidos se aguçarem e os olhos se arregalarem, à espera de episódios que nos arrepiem a alma: assim são as histórias desde os tempos mais remotos. Ficções nos ajudam a desvendar mundos - tanto externos quanto internos -, a domar o medo do desconhecido e a desenvolver elaborações psíquicas que contornam as emoções com palavras.
TRAMAS QUE ATRAVESSAM NOITES
Diz a história que Sherazade, uma jovem bela e inteligente, convence seu pai, o vizir, a levá-la ao palácio do sultão para casar-se com ele, apesar de saber que, após a noite de núpcias, seu destino seria a morte por decapitação.Traído pela primeira esposa, o sultão já se vingara da infidelidade da mulher assassiando inúmeras moças do reino. Apesar dos protestos do pai, a jovem decide interromper asaga de crueldade. Mas, antes de sair de casa, diz à irmã caçula que entre no quarto, na primeira noite, onde estará com o marido e peça a ela, pouco antes do nascer do dia, que lhe conte o último de seus contos maravilhosos.. A história que Sherazade conta à irmãzinha atrai a atenção do sultão, que decide poupar sua vida para continuar a acompanhar a narrativa na noite seguinte. E assim, fiando histórias, tecendo ciclos de contos, a jovem atravessa mil e uma noites e se mantém viva, ganhando por fim (embora algumas versões sejam controvertidas) o amor do marido.
CRIANÇAS MAIS ATENTAS E DISPOSTAS A APRENDER
Nunca houve sociedade humana sem um repertório de histórias próprias ou sem a necessidade de contá-las. Também não há registros de sociedade isenta da necessidade de fabular, inventar-se ou construir, na lentidão dos séculos, seu imaginário e mitos. Enquanto as civilizações sobrevivem, elas contam. Depois, o que delas sabemos é o que se conta.
Os contos têm, além disso, importância capital para a vida psíquica das pessoas, em especial das crianças. Embora já tenha havido resistências, aqui e ali, por parte dos adultos quanto à violência dos conteúdos, seu potencial terapêutico tem hoje aprovação quase unânime. E, no contexto atual, regido pela imagem e pela informação, é importante trazer de volta a figura do narrador. Não por acaso proliferam as"contações" de histórias; os cursos e oficinas que ensinam formas eficientes e criativas de narrar; grupos de voluntários que levam a prática a hospitais, asilos e abrigos para crianças; professores são incentivados a usar as histórias, sem parcimônia, como recurso didático; e nunca chegaram às livrarias tantos títulos atraentes voltados ao público infantil. Parece que em meio à sofisticação tecnológica (que produz inúmeros jeitos de narrar, com imagens tridimensionais, por exemplo) retorna-se à magia do olho no olho, daspalavras que fluem com simplicidade e encantam justamente pelas formas variadas que podem tomar, seguindo os tons escolhidos pelo ouvinte para colorir cadacena.
Uma pesquisa, realizada na França, pelo médico Celso Gutfriend, pós-doutor em psiquiatria infantil, pela Universidade Paris VI, autor de "O terapeuta e o lobo - A utilização terapêutica do conto" (Casa do Psicólogo, 2009) mostrou a importância das narrativas paraa evolução favorável da vida psíquica de crianças que viviam em abrigos públicos. Elas apresentaram grande melhora dos problemas de conduta, mostrando-se mais capazes de expressar, de diferentes formas, o intenso sofrimento resultante da separação após a intervenção. Outro estudo, desenvolvido em um bairro periférico de Porto Alegre, verificou o efeito do conto no acompanhamento de ciranças com transtornos de aprendizagem que frequentavam uma escola comunitária. Os resultados revelam que os alunos se mostram mais atentos, concentrados e predispostos à aprendizagem após ouvir uma história que os cative.
LABIRINTOS DO MINOTAURO
Em "Um Sopro de vida" (1978, Clarice Lispector, delicada e audaciosa na "costura para dentro" das palavras, escreve: "...o drama de todos: equilibrar-se no instável. Pois tudo pode acontecer e danificar a vida mais íntma da pessoa. O que é que terá feito à minha alma no ano que vem? Essa alma terá crescido? E crescido tranquilamente ou através da dor de duvidar?" Mais a diante, na mesma obra, Clarice diz:"Se eu não acho um modo de falar de mim, a palavra me sufoca a garganta atravessando-a como uma pedra não deglutida. Eu quero ter acesso a mim mesmo na hora em que eu quiser como quem abre as portas e entra. Não quero ser vítima do acaso libertador. Quero eu mesmo ter a chave do mundo e transpô-lo como quem se transpõe da vida para a morte e da morte para a vida".
Talvez sejam as histórias - de si mesmo, do outro, do mundo, das possibilidades e da castração, do terror e do afeto, da convergência e da contradição - essa espécie de chave à qual se refere Clarice. Esses fios de palavras enrolados como no carretel do bebê podem conduzir e possibilitar o ir e vir por esse jogo de tantas histórias (ouvidas, contadas, imaginadas, desejadas, sonhadas, brincadas, partilhadas...). Como as meadas de Ariadne, desenroladas no labirinto do Minotauro, fios de histórias propostas pelo paciente e, muitas vezes, narradas como se fossem jogados ao acaso, oferecem à dupla analítica a possibilidade de ir e vir nesse emaranhado.
É comum dizer que o futuro se gesta no passado. Mas o inverso também é possível: a existência de uma passado que se revê, se renova e se recria. Nesse sentido, as construções e reconstruções propostas por Freud abarcam mais que o resgate do que foi vivido (de forma real ou fantasiada). A recuperação ou mesmo a edificação do passado, no presente (e em presença de alguém que ouve, testemunha e intervém), permite a criação de futuros possíveis, de outras versões de si mesmo e do outro, não apenas reprodutoras do mesmo, mas produtoras de novas tramas.
Muitas vezes, no divã, "a pele dos sonhos" parece fina demais, e na cadeia de associações as narrativas se confundem. As histórias tecidas são feitas de atravessamentos. Muito mais que resgatar fatos precisos e exatos, no entanto, é importante conferir sentidos. Em inúmeras situações, a construção e a reconstrução propiciam resultados até mais eficazes que aqueles obtidos pelas interpretações. Um dos maiores desafios do analista talvez seja retomar os fios e ajudar seu paciente a tecer laços de nexos. Claro, o Minotauro excluído - com corpo humano e cabeça deformada de fera, a expressão de horror, assim como os conteúdos banidos da consciência - pode espreitar a cada esquina do labirinto. Ainda assim, vale a pena penetrar nas curvas sinuosas desse microcosmo e, ao encontrar o monstro, talvez o recurso seja encantá-lo (e iuntegrá-lo) com histórias. Como fez Scherazade com seu sultão.
(Gláucia Leal- jornalista,psicóloga e psicanalista- Mente &Cérebro, Ano XVI.n° 197.jun.2009)