segunda-feira, 27 de junho de 2011

As qualidades certas para se tornar um líder
Especialistas dão dicas para o gestor se destacar na empresa, se tornar agregador, ser bem-sucedido no que faz e, claro, crescer na carreira

Com o mercado brasileiro cada vez mais inserido na economia globalizada, o gestor que pretende subir na carreira precisa ter suas  competências e qualidades em sintonia com as exigências cada vez mais sofisticadas do mundo corporativo.
Para ajudar na ascensão, o Estado ouviu as dicas de oito especialistas. "Para começar, eu faço uma diferenciação entre gestor e líder", diz a consultora associada da Muture, Roberta Yono Ebina, "Gestor é um cargo e liderança, uma habilidade, uma competência", explica. "Hoje, há muitos gestores e poucos líderes. O gestor controla seus colaboradores, impõe sua vontade e foca nos resultados. O líder estimula e desafia os colaboradores. Ele conhece cada um e o jeito de tirar o melhor deles. Seu foco é nas pessoas."
As considerações da especialista levantam a velha questão: é possível aprender a ser chefe? "Acredito que todos têm capacidade para liderar. Muitos têm características mais desenvolvidas dentro de si e outros demoram um tempo para aprender. No entanto, ele só vai mostrar do que é capaz no dia a dia", afirma o presidente da Sociedade Latino Americana de Coaching (SLAC), Sulivan França.
O diretor de pesquisas da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), Eugenio Mussak, concorda. "A liderança é uma competência para a qual alguns demonstram mais talento. Geralmente, quem se dá melhor são aqueles que escolheram assumir a responsabilidade."
Liderando- As empresas têm duas formas para escolher seus gestores, promovendo empregados competentes ou contratando pessoas já prontas.
"É um risco promover quem nunca liderou, mas tudo depende de empresa e do setor de atuação. A área de serviços é mais dinâmica, por isso necessita ser mais ágil e contratar gente pronta", diz o diretor de Operações da Human Brasil, Fernando Montero da Cosa. E pondera: "A indústria é mais lenta e tem cultura de especialistas. Nela, damos treinamento para transformar técnicos em líderes."
Prestigiar um talento interno é sempre bom, mas pode acabar se tornando um erro em alguns casos. "A empresa pode estar trocando um bom técnico por um gestor ruim. Quem vai assumir o cargo precisa fazer análise própria e dizer se realmente está pronto para exercer um cargo de comando", diz a sócia da Search Consultoria em Recursos Humanos, Ilana Lissker.
De qualquer forma, vindo de dentro ou de fora, é preciso ter foco para manter a carreira em ascensão. "O gestor precisa ter uma série de habilidades para satisfazer a empresa e os funcionários ao mesmo tempo. A maior delas é saber ouvir e se comunicar bem. Outra coisa importante é não querer subir muito rápido, estudar e se preparar bem para o posto. Quanto mais se sobe mais competências são exigidas", conta a diretora do Grupo Soma Desenvolvimento Corporativo, Sonia Carminhato. "Apesar disso, o gestor mais procurado pelas empresas continua sendo o super-homem que saiba tudo", afirma a gerente de negócios da consultoria de RH Across, Daniele Mendonça.
"Quando alguém se encontra em uma posição de comando, é preciso que saiba planejar. Que estabeleça metas com sua equipe, organize trefas e controle o desenvolvimento do trabalho. Ele precisa saber onde se quer chegar e esteja alinhado com as determinações da empresa", afirma João Marcelo Furlan, sócio e fundador da Enora Leader, que promove cursos corporativos.

SEIS HABILIDADES NECESSÁRIAS - Saiba quais são algumas das principais características exigidas dos gestores que pretendem seguir no caminho que leva ao topo. O percurso, no entanto, é longo e pode ser traiçoeiro...
1. Desprendimento e incentivo - "Para gerir bem é preciso delegar. É necessário dar autonomia para os colaboradores, se não o gestor se sobrecarrega e acaba não permitindo o desenvolvimento dos funcionários", diz Fernando Montero da Costa. "Saber elogiar é outro fator importante. Não é hábito dos gestores, mas ele deve ser sincero  e espontâneo ao congratular seus comandados pelo serviço bem feito", diz Sonia Carminhato. Ela também diz que saber se comunicar é importante, mas outro fator dará apoio para os líderes diante de sua equipe: "Proteja e defenda os seus funcionários. Veja se eles têm uma carga horária e salário corretos e os promova com justiça."
2. Inteligância emocional - "Um cargo de comando é muito solitário, pois a pessoa não tem com quem dividir seus problemas. Ele é o catalizador e alvo dos problemas, por isso é preciso inteligência emocional para lidar com a ascensão", afirma Sulivan França. "O estresse só será um problema se a questão for desproporcional a sua comtepência. As dificuldades só vão aumentar. É preciso conviver com elas e para isso é preciso ser organizado. Ter qualidade na vida pessoal também ajuda", conta Eugenio Mussak. "A pressão sempre vai existir no cargo. Se você se espcializa e tem conhecimento, fica mais fácil. Mas entenda que ninguém é super-herói", conta Sonia Carminhato.
3. Humildade - A soberba é uma característica que deve ser esquecida pelos gestores, porque gera antipatia e pode minar a carreira. "O que se vê é que mutios líderes que subiram rápido ficam com ego inflado. Nesse momento é possível ver que ele não estava pronto para crescer. Falta humildade", diz Sulivan França. "Não seja arrogante, você não está em uma competição e nem precisa se sentir ameaçado pelos outros", afirma Sonia Caeminhato. "A vaidade é um dos piores pecados do gestor. É o que, muitas vezes, impede a organização de fazer mudança. É preciso ser mais humilde e se colocar de forma  a sempre ajudar a sua equipe", conta Roberta Yono Ebina.
4. Aceitação e paciência - "Deixe que a visão e os valores da companhia sejam seus guias na hora de se comportar. Faz sentido praticá-los em vez de inventar nova fórmula", diz Roberta Yono Ebina, da Muttare. Os resultados devem aparecer, mas também é preciso de tempo. "O gestor precisa de um período maior para mostrar suas competências. Ele próprio tem de ter consciência disso e saber pedir tempo para mostrar seu trabalho", afirma Ilana Lissker da Search. "Ao lidar com a empresa, é preciso entender que ela é um organismo vivo. Procure saber quais os objetivos dela, sua estratégia e  cultura. Porém, muitas vezes eles não estão escritos claramente, diz Eugenio Mussak.
5.  Conhecimento - Se você está ssumindo um cargo e não tem experiência, a primeira coisa é saber o que a empresa deseja de você naquele cargo", afirma Daniele Mendonça, da Across. Outro ponto a ser observado é o momento que a empresa vive." A companhia precisa de um líder específico dependendo da sua necessidade. Se a empresa quer se expandir é provável que precise de alguém agressivo", diz Sulivan França da SLAC. Também é importante saber se você quer e se está realmente pronto para assumir a posição. "Existe gestão de pessoas e de coisas. Uma coisa é saber lidar com projeto, estoque, etc. Outra é lidar com pessoas", afirma Eugenio Mussak.
6. Vontade de aprender - "A dica é continuar a se aprimorar sempre. O sucesso do passado não garante o do futuro. Mesmo que muitas empresas tenham programas de qualificação, não espere por eles", afirma Eugenio Mussak, da ABRH. "Um dos pecados do gestor é deixar de trabalhar seu desenvolvimento, pois sempre existe algo para se aprender. Se ele permanecer estagnado, pode perder o cargo. É preciso se aprimorar sempre para evoluir, ainda mais nos dias atuais, em que é preciso saber conviver com a mudança. É necessário se adaptar ao ambiente, às pessoas, às novas tecnologias, a mercados e a tendências", diz Fernando Montero da Costa, da Human Brasil.
- O semeador - é importante preparar os colaboradores para assumir o seu posto. Isso pode representar uma promoção mais rápida.
- O equilibrista - o gestor tem que andar na corda bamba, tentando satisfazer as necessidades da empresa e dos colaboradores.
- O apoiador - o gestor traz resultados em curto prazo, mas o líder forma equipes e incentiva criatividade.
(André Zara - O Estado de São Paulo. 26 de junho de 2011) 



quarta-feira, 8 de junho de 2011

A DESCRIÇÃO QUE ILUMINA
Romance do autor gaúcho que morreu em fevereio mostra como se delineia uma personagem
(Por Luiz Costa Pereira Júnior)
Era um escritor vulcânico, capaz de concluir um texto elegante e consistente minutos depois de solicitado. Moacyr Scliar escreveu mais de 70 livros, traduzidos em 12 idiomas, desde 1962, quando lançou Histórias de um Médico em Formação. A morte, aos 74 anos, em 27 de fevereiro, por falência múltiplas de órgãos após um AVC, abriu um vazio nas letras nacionais. Pois Scliar se revelou um autor sofisticado, capaz de retratar os laços invisíveis entre uma situação social muito específica e os paradoxos mais amplos da existência humana.
Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003 e autor premiado ( o mais recente foi o Jabuti de livro do ano dado a Manual da Paixão Solitária, em 2009), considerava que a formação do estilo resulta sempre de uma combinação de fatores. "Autores e autoras não decidem que espécie de estilo terão. Isto não é o fruto de uma decisão consciente, vai brotanto espontaneamente, como resultado de um background psicológico e cultural, do gênero escolhido e de outros fatores".
Filho de judeus russos, Scliar teve no humanismo, na leveza e na crítica social algumas de suas matrizes de inspiração. A temática judaica o levou a compor A Mulher que Escreveu a Bíblia (1999), romance que recebeu o Prêmio Jabuti 2000.
A trama da obra mostra uma mulher que, ao consultar um ex-historiador que virou terapeuta de vidas passadas, descolbriu ter sido a mais feia e única letrada das 700 mulheres do rei Salomão, no século 10 a.C. Baseado na ideia de que uma mulher teria sido a autora da Bíblia, a obra dosa momentos de escracho e requinte. O trecho a seguir (página 41 do livro) já foi aproveitado em vestibulares e concursos.
A Mulher que Escreveu a Bíblia
A mim pouco importava. Tendo descoberto o mundo da palavra escrita, eu estava feliz, muito feliz (...) Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que uma letra atrai outra, essa afinidade organizando não apenas o texto como a vida, o universo. O que eu via, no pergaminho, quando terminava o trabalho, era um mapa, como os mapas celestes que indicavam a posição das estrelas e planetas, posição essa que não resulta do acaso, mas da composição de misteriosas forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam minha mão quando ela deixava seus sinais sobre o pergaminho. (...) diria a ele que agora minha vida tinha sentido, um significado: feia, eu era, contudo, capaz de criar beleza. Não a falsa beleza que os espelhos enganosamente refletem, mas a verdadeira e duradoura beleza dos textos que eu escrevia, dia após dia, semana após semana - como se estivesse num estado de permanente e deliciosa embiraguez.

1. A frase interrompe uma descrição anterior sobre a condição de vida da personagem e prepara terreno para a digressão da frase seguinte. Tem a função de servir de passagem para o trecho mais decisivo do período para a construção da personagem: a enumeração das razões que constituem seu ato de escrever.

2. As implicações dessa enumeração (colocar letras no pergaminho, associá-las, ver o resultado da associação) mostram a perícia técnica do autor em inserir traços da personalidade da protagonista na descrição de suas tarefas.

3. Não é gratuito que o autor identifique a personagem por sua feiura. Ela é o combustível dramático da personagem, e Scliar reitera o fato de que a mulher feia foi escolhida pela habilidade de criar beleza por escrito. É seu trunfo, a razão que dá visibilidade e sentido à narradora.

4. A descoberta das possibilidades expressivas da escrita é a oportunidade para o autor exercitar o paralelo entre a criação do texto, a harmonização de fatos e falas num escrito, ao mistério do mundo. A física leva à metafísica. O pergaminho leva à reflexão sobre a ordem do universo. O concreto leva ao abstrato, a tese leva ao êxtase.

5. O autor chega à conclusão sobre a personagem que havia sido construída anteiormente pela enumeração das tarefas da escrita. Com habilidade, Scliar estabelece a síntese de elementos que estavam em germe ao longo do trecho.

6. O evidente paralelo entre a Sherazade de As Mil e Uma Noites e a narradora do livro de Scliar - ambas marcadas pela obrigação de narrar infinitamente - deve levar em conta a distância das situações de ambas: a primeira conta histórias para prolongar a própria vida; a segunda desfruta com deleite a tarefa de recolher as histórias que lhe foram atribuídas.

( Língua Portuguesa. Ano 5. nº 66 abril 2011)


segunda-feira, 6 de junho de 2011

8 JEITOS DE ENTENDER O MUNDO NO FEMININO

Gramática e ideologia se unem quando o assunto é definir a flexão das palavras pelo gênero
(Por Sirio Possenti)

As opiniões mais ou menos bem fundamentadas que circulam a propósito da forma "presidenta" são um bom pretexto para deixar um pouco mais claros alguns fatos sobre a questão do gênero na língua portuguesa. A seguir, em forma de itens, estão algumas afirmações quase isentas de dúvidas, em um tema nada simples.
Como se vê nestas páginas, quem acha que "presidenta" é forma inútil e "todos e todas" e formas assemelhadas são só jogadas ideológicas deveria aceitar facilmente que o chamado  masculino não é propriamente masculino, não se refere a seres ou objetos masculinos por algum critério "objetivo". O chamado masculino, em português, não passaria de ausência de marca de feminino. O caso não seria o único na língua. O português também não marca o singular de nomes, adjetivos e artigos. Trata-se de palavras apenas sem marca de plural.
É possível que derivações como a de "presidenta" venham a ser cada vez mais usadas, se cada vez mais houver mulheres executando tais funções. Muitos estranham a forma feminino só por ser pouco usada, o que se deve ao fato de não ter havido mulheres exercendo a função.

1. Nem toda palavra flexiona o gênero
a) Algumas palavras têm formas masculinas e femininas. Outras, não. Nos casos em que existem as duas formas, pode-se tratar o fenômeno como flexão, embora alguns o tratem como derivação. Por exemplo, "menina" é a forma feminina (derivação) de "menino". Mas "tecla" não tem correspondente masculino e "teclado" não tem correspondente feminino.
b) Em diversos casos, há algum tipo de correspondência entre palavras e coisas: por exemplo, existem, no mundo, meninos e meninas, e a língua tem formas que designam cada grupo ou cada membro de cada grupo.

2. Diferentes, mas não derivadas
a) Há casos em que a correspondência entre seres do mundo e palavras masculinas e femininas não é representada na gramática. Homem/mulher, boi/vaca, cavalo/égua, cachorro/cadela são alguns exemplos: as palavras femininas de cada uma dessas duplas referem-se a seres femininos, mas não são derivações das formas masculinas; são completamente diferentes delas.

3. Sem gênero oposto
a) Nem todas as palavras masculinas e femininas têm correlatos machos e fêmeas - elas constituem, na realidade, uma minoria. Basta considerar palavras como muro, tijolo (masculinas) e porta, chave (femininas), entre milhares de outras, em especial as ditas abstratas, como pensamento e intuição.

4. O peso da realidade
a) A existência ( a ocorrência) ou não de femininos de base gramatical, derivados de palavras masculinas, é, em muitos casos, efeito (embora não uniforme), de alguma correspondência de fatos da língua com fatos do mundo. Por exemplo, não haveria a forma parenta se só houvesse parentes masculinos. Por outro lado, o fato de haver algum tipo de distinção no mundo não cria formas gramaticais correspondentes. Emprega-se parenta, mas não tenenta - embora já existam mulheres tenentes. O mesmo vale para sargenta. Os fenômenos gramaticais relativos ao léxico são bastante irregulares.

5. Origem esquecida
a) Há femininos que resultam de derivação, mas sua origem é esquecida. Horta é o feminino de horto (Mattoso Câmara pensa que sim, Bechara também, mas o dicionário Houaiss não registra): horta é um tipo de horto, assim como jarra é um tipo de jarro e barca um tipo de barco. Observe-se que não há, nesser caso, nenhuma relaçlão entre gênero e sexo.

6. Mudança no radical
a) Muitos femininos diferem do masculino só em sua desinência (em -a, na maior parte). Mas um pequeno grupo de palavras femininas (e de plurais) é marcado pela mudança da vogal do radical: horto/horta, porco/porca, sogro/sogra (sogro/sógra, etc.)

7. O peso do contexto
a) A questão gramatical do gênero pode tornar-se socialmente relevante em certas épocas, vir a ser objeto de debate por motivos culturais, políticos, ideológicos. Esse movimento faz com que ocorram construções que não ocorriam ou se generalizem construções pouco usadas.
É por motivos ideológicos (valorização do feminino) que muitos iniciam suas falas com "Boa noite a todos e a todas", "Brasileiros e brasileiras", etc. É também por fundo ideológico similar, e militante, que permitiu que se fizesse a defesa explícita da forma "presidenta". E também por ideologia que surgiu discurso contrário, defendendo que tal forma não é necessária ou inexiste na língua (!) - apesar do registro de dicionários sisudos.

8. Na sintaxe
a) Gênero não diz respeito só a palavras, mas atinge o domínio da sintaxe. Há estudiosos que defendem que a maior garantia de que uma palavra é masculina é ser precedida do artigo "o" (e feminina, se "a"). Poucas palavras são precedidas ora por uma ora por outro artigo, conforme o grupo de falantes: o/a guaraná, o/a alface, etc. Na maioria, nenhma variação é observada. Por isso, esta  é garantia até mais sólida do que o sexo ("criança" pode ser menina ou menino, "leão" pode ser leão ou leoa, etc.) ou outro traço do ser. O que mostra que o gênero é questão interna à língua, é arbitrário.
b) Problema surge ao se explicar a concordância de predicados com sujeitos. Como explicar "navegar é preciso", se "navegar" é oração? Deve-se defender que é masculina? Ou enganar o ouvinte, abandonando o fato objetivo, substituindo "navegar" por "navegação' e assim explicar o feminino? e como explicar "hoje faz frio" (e não "fria"), se a oração não tem sujeito, nem oracional? Talvez se deva aceitar a hipótese de que o português marca morfologicamente só o feminino. Mesmo finais em o (menino) não seriam marcas de masculino (tese de Mattoso Câmara, Bechara e  John Martin), mas só vogal temática. 
(Língua Portuguesa. Ano 5. nº 66.abril/2011)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

EIS A QUESTÃO!


Das lentes de contato às chuvas de verão, como a vida contemporânea tem mudado os papéis do "ser" e "estar" no idioma
(Por John Robert Schimitz)
O contraste linguístico entre os verbos de ligação "ser" e "estar", bastante sutil, especialmente para aprendizes de português, normalmente não ocasiona problemas para os próprios nativos do idioma, como no caso das dificuldades observadas no uso no futuro do subjuntivo dos verbos "vir" e "ver": "quando eles 'vierem' para a cerimônia..."/ "quando eles 'virem' a destruição causada pela inundação..." ou o infinitivo flexionado "ao entrarem no elevador...", "ao irmos à festa...". O francês e o inglês (e outros idomas) têm um único verbo, respectivamente "être" e "to be", que são, sem contextualização, ambíguos em comparação com a língua portuguesa:
"Paul est curieux." Paulo (é/está) curioso.
Os dois verbos em português se tornam mais transparentes quando se acrescentam locuções adverbiais:
"Paulo é curioso por natureza.
Paulo está curioso esta tarde."
Observa-se que a locução "por natureza" co-ocorre apenas num enunciado que tem o verbo "ser"; a locução adverbial de tempo "esta tarde" co-ocorre só quando aparece "estar". Daí se vê que as duas orações que seguem são agramaticais e, por isso, levam asteriscos:
*Paulo é curioso esta tarde.
*Paulo está curioso por natureza.
Flexibilidade
Seguindo este raciocínio, diria que o verbo "ser" está ligado ao gênio das pessoas, a seus atributos, isto é, ao jeito delas. Os enunciados "Paulo é preguiçoso. Isso é jeito dele" ou "Ser preguiçoso...é o jeito dele" ocorrem no idoma, enquanto "estar", no mesmo contexto, não ocorre no sistema: *Estar preguiçoso... é o jeito (a natureza) dele".
Daí que "ser" é o verbo da essência e das características consideradas como inerentes e normalmente estáveis. Por exemplo: O livro é verde; João é professor; Maria é médica; a cobra é venenosa; as raposas são astutas, etc.
Agora, em vez de Paulo, podemos pensar em outra pessoa (fictícia). Paula é trabalhadora, cumpridora de suas responsabilidades, mas estando de férias num belo dia de verão na praia, nem sequer tem vontade de ler. Podemos caracterizar o seu comportamento nos seguintes termos: Ela está preguiçosa hoje; ela está sendo preguiçosa; ou ela está de preguiça. Ninguém é de ferro e ela merece umas boas férias para curtir os amigos.
Depreendemos disso que o verbo "estar" é o verbo que marca mudanças observáveis na interação entre os diferentes interlocutores, como por exemplo: João está vivo; o rei está morto; José está penalizado; estou morto de cansado, etc.
O sistema do português tem as suas regras internas, mas elas são flexíveis, permitindo que os usuários expressem livremente as suas intenções no jogo comunicativo. Os quadros a seguir mostram algumas dessas aplicações comunicativas que a vida contemporânea começa a exigir dos verbos "ser" e "estar".

As contingências do "ser" - A vida cotidiana tem provocado reformulações no uso dos verbos "ser" e "estar" no Brasil, para além dos falantes que até "brincam" com eles, em tom de galhofa:
"Esta noite eu estou sendo velho" = (estou me comportanto como velho).
"Esta semana eu estou sendo pobre" = ( finjo que não tenho dinheiro para gastar).
O verbo "ser" transmite os fenômenos da natureza que normalmente não mudam como nos enunciados: "As cidades de Manágua e de Chicago são lacustres.' e "A cidade de Juazeiro(BA) é fluvial." Mas as coisas mudam e a presença do verbo "estar" dramatiza nitidamente a situação que castiga na atualidade muitas cidades no Brasil e terras afora:
"A avenida princiapl de nossa cidade está fluvial há três dias."
"Devido a mais uma enchente, o centro da cidade está lacustre hoje."
"Ser" é ligado a nossa identidade: somos gente, eles são jornalistas, sou radialista, sou ministro. Mas todos conhecem as veleidades da política e muitos se lembram da "fritura" do ex-ministro Eduardo Portella, que disse, sem rodeios. "Estou ministro". Para transmitir a mesma situação em língua francesa  os falantes teriam de recorrer ao advérbio maintenant ou à locução adverbial "en ce moment": "En ce moment (maintenant), je suis le Ministre de l'Education Nationale".

O uso brasileiro do "estar" - Os usuários do idioma lançam mão do verbo "estar" para comunicar o seu estado de espírito, suas atitudes e sentimentos: estar de mal com alguém, estar com o saco cheio, estar com a bola toda, estar com tudo em cima, estar numa boa, estar numa sinuca, etc. Acredito que eles têm um carinho especial pelo "estar", porque, na conversa informal e íntima, o verbo sofre aférese e "está" vira "tá" e "estou", "to".
O mundo realmente mudou, pois hoje em dia, quem tem olhos azuis pode estar com  olhos cor de cristal, de topázio, ocre e mel graças às lentes de contato coloridas. Assim, os usuários do português podem jogar o verbo  ter "contra" estar com para marcar sucintamente diferenças: Maria tem olhos negros, mas hoje está com olhos cor de cristal! As pessoas que choram muito normalmente estão com os olhos vermelhos, ao passo que os coelhinhos, que aparecem nos anúncios na época pascal, vão continuar tendo os olhos vermelhos.

A união dos dois verbos - "Ser" ( latim sedere) e "estar" (stare) caracterizam o português (também o espanhol, catalão e galego), fato que motivou Caetano Veloso a mencionar os dois verbos em Língua: "Gosto de sentir minha língua roçar / A língua de Luís de Camões / Gosto de ser e estar / E quero me dedicar / A criar confusões de prosódia / E uma profusão de paródias..."
Em certas instâncias no Brasil, a dupla de verbos chega até a fazer companhia um ao outro, na fala e na escrita de alguns usuários, para tornarem os enunciados mais enfáticos:
"Trabalhei demais esta semana. Estou é cansado!"
"Estamos é contentes com as notícias alvissareiras."
(Língua Portuguesa. Ano 5. nº66.abril de 2011)



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