quarta-feira, 1 de junho de 2011

EIS A QUESTÃO!


Das lentes de contato às chuvas de verão, como a vida contemporânea tem mudado os papéis do "ser" e "estar" no idioma
(Por John Robert Schimitz)
O contraste linguístico entre os verbos de ligação "ser" e "estar", bastante sutil, especialmente para aprendizes de português, normalmente não ocasiona problemas para os próprios nativos do idioma, como no caso das dificuldades observadas no uso no futuro do subjuntivo dos verbos "vir" e "ver": "quando eles 'vierem' para a cerimônia..."/ "quando eles 'virem' a destruição causada pela inundação..." ou o infinitivo flexionado "ao entrarem no elevador...", "ao irmos à festa...". O francês e o inglês (e outros idomas) têm um único verbo, respectivamente "être" e "to be", que são, sem contextualização, ambíguos em comparação com a língua portuguesa:
"Paul est curieux." Paulo (é/está) curioso.
Os dois verbos em português se tornam mais transparentes quando se acrescentam locuções adverbiais:
"Paulo é curioso por natureza.
Paulo está curioso esta tarde."
Observa-se que a locução "por natureza" co-ocorre apenas num enunciado que tem o verbo "ser"; a locução adverbial de tempo "esta tarde" co-ocorre só quando aparece "estar". Daí se vê que as duas orações que seguem são agramaticais e, por isso, levam asteriscos:
*Paulo é curioso esta tarde.
*Paulo está curioso por natureza.
Flexibilidade
Seguindo este raciocínio, diria que o verbo "ser" está ligado ao gênio das pessoas, a seus atributos, isto é, ao jeito delas. Os enunciados "Paulo é preguiçoso. Isso é jeito dele" ou "Ser preguiçoso...é o jeito dele" ocorrem no idoma, enquanto "estar", no mesmo contexto, não ocorre no sistema: *Estar preguiçoso... é o jeito (a natureza) dele".
Daí que "ser" é o verbo da essência e das características consideradas como inerentes e normalmente estáveis. Por exemplo: O livro é verde; João é professor; Maria é médica; a cobra é venenosa; as raposas são astutas, etc.
Agora, em vez de Paulo, podemos pensar em outra pessoa (fictícia). Paula é trabalhadora, cumpridora de suas responsabilidades, mas estando de férias num belo dia de verão na praia, nem sequer tem vontade de ler. Podemos caracterizar o seu comportamento nos seguintes termos: Ela está preguiçosa hoje; ela está sendo preguiçosa; ou ela está de preguiça. Ninguém é de ferro e ela merece umas boas férias para curtir os amigos.
Depreendemos disso que o verbo "estar" é o verbo que marca mudanças observáveis na interação entre os diferentes interlocutores, como por exemplo: João está vivo; o rei está morto; José está penalizado; estou morto de cansado, etc.
O sistema do português tem as suas regras internas, mas elas são flexíveis, permitindo que os usuários expressem livremente as suas intenções no jogo comunicativo. Os quadros a seguir mostram algumas dessas aplicações comunicativas que a vida contemporânea começa a exigir dos verbos "ser" e "estar".

As contingências do "ser" - A vida cotidiana tem provocado reformulações no uso dos verbos "ser" e "estar" no Brasil, para além dos falantes que até "brincam" com eles, em tom de galhofa:
"Esta noite eu estou sendo velho" = (estou me comportanto como velho).
"Esta semana eu estou sendo pobre" = ( finjo que não tenho dinheiro para gastar).
O verbo "ser" transmite os fenômenos da natureza que normalmente não mudam como nos enunciados: "As cidades de Manágua e de Chicago são lacustres.' e "A cidade de Juazeiro(BA) é fluvial." Mas as coisas mudam e a presença do verbo "estar" dramatiza nitidamente a situação que castiga na atualidade muitas cidades no Brasil e terras afora:
"A avenida princiapl de nossa cidade está fluvial há três dias."
"Devido a mais uma enchente, o centro da cidade está lacustre hoje."
"Ser" é ligado a nossa identidade: somos gente, eles são jornalistas, sou radialista, sou ministro. Mas todos conhecem as veleidades da política e muitos se lembram da "fritura" do ex-ministro Eduardo Portella, que disse, sem rodeios. "Estou ministro". Para transmitir a mesma situação em língua francesa  os falantes teriam de recorrer ao advérbio maintenant ou à locução adverbial "en ce moment": "En ce moment (maintenant), je suis le Ministre de l'Education Nationale".

O uso brasileiro do "estar" - Os usuários do idioma lançam mão do verbo "estar" para comunicar o seu estado de espírito, suas atitudes e sentimentos: estar de mal com alguém, estar com o saco cheio, estar com a bola toda, estar com tudo em cima, estar numa boa, estar numa sinuca, etc. Acredito que eles têm um carinho especial pelo "estar", porque, na conversa informal e íntima, o verbo sofre aférese e "está" vira "tá" e "estou", "to".
O mundo realmente mudou, pois hoje em dia, quem tem olhos azuis pode estar com  olhos cor de cristal, de topázio, ocre e mel graças às lentes de contato coloridas. Assim, os usuários do português podem jogar o verbo  ter "contra" estar com para marcar sucintamente diferenças: Maria tem olhos negros, mas hoje está com olhos cor de cristal! As pessoas que choram muito normalmente estão com os olhos vermelhos, ao passo que os coelhinhos, que aparecem nos anúncios na época pascal, vão continuar tendo os olhos vermelhos.

A união dos dois verbos - "Ser" ( latim sedere) e "estar" (stare) caracterizam o português (também o espanhol, catalão e galego), fato que motivou Caetano Veloso a mencionar os dois verbos em Língua: "Gosto de sentir minha língua roçar / A língua de Luís de Camões / Gosto de ser e estar / E quero me dedicar / A criar confusões de prosódia / E uma profusão de paródias..."
Em certas instâncias no Brasil, a dupla de verbos chega até a fazer companhia um ao outro, na fala e na escrita de alguns usuários, para tornarem os enunciados mais enfáticos:
"Trabalhei demais esta semana. Estou é cansado!"
"Estamos é contentes com as notícias alvissareiras."
(Língua Portuguesa. Ano 5. nº66.abril de 2011)



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