UMA VISÃO INTERLIGADA DO IDIOMA
A divisão de métodos que ocorre entre o estudo da gramática e a prática da língua funcionaria melhor se todos entendessem que essas duas instâncias se complementam
Passagem de uma coluna antiga do professor Pasquale (Folha de S. Paulo, 08/01/2009, p.C2) fornece o pretexto para explicitar os diversos aspectos de uma questão que quase sempre são inadequadamente misturados. Começa citando um poema de Manuel Bandeira, que foi musicado por Dorival Caymmi e do qual se tratou em prova da Fuvest: "O rei atirou / sua filha ao mar / e disse às sererias: / --Ide-a lá buscar".
A propósito da segunda das questões formuladas (uma perguntava pelo efetio expressivo de "ide" e outra mandava substituir a segunda pessoa do plural pela terceira), faz o seguinte comentário: "Agora o bicho pega de vez, ao menos para quem teve o azar de estudar com "professores" que julgam que nas aulas de português só se deve falar da língua viva, da língua de hoje".
Aspectos - Há vários aspectos nesta passagem que merecem comentários:
a) As aspas em "professores" (que poderiam estar também em outras ocorrências da palavras, querendo);
b) O comentário "agora o bicho pega de vez", curiosamente depois da segunda questão, que supõe conhecimentos de língua de hoje, a viva; mas, especialmente,
c) A "mistura" implícita entre aulas de português e de gramática.
O professor Pasquale propõe que as respostas podem ser dadas a partir do conhecimento das formas gramaticais da língua mais "antiga". E supõe que alunos que só tivessem estudado a língua viva teriam problemas para resolver as questões. Ele pode ter razão no que se refere à segunda tese, mas não necessariamente em sua crença na primeira.
Distinções - De fato, nada garante que o estudo das formas antigas implique capacidade de dar conta de seu efeito expressivo. Como este efeito não é óbvio, importa distinguir:
a) Estudar gramática (do português);
b) Estudar português.
Em tese, é perfeitamente possível estudar gramática (fazer gramática, aprender como se faz gramática) sem estudar português (sem ler textos, sem explicitar efeitos de sentido diversos). Por outro lado, pode-se aprender a explicitar a relação entre o uso de uma forma e seus efeitos de sentido sem estudo sistemático de uma gramática. Pode-se fazer esse trabalho intuitivamente (o que não quer dizer sem preparo).
Por exemplo, pode-se explicar o efeito de escolhas lexicais sem estudar gramática. Ou explicar o sentido de "joelhos", palavra com que Drummond se refere aos joelhos de velhas que vão à igreja (como seriam velhas!) ou de "septentrional", que Guimarães Rosa emprega para implicar que as aves veem de muito longe. Ambas são formas arcaicas: o uso nesses contextos produz efeitos correlacionados a sua antiguidade.
Também se pode explicitar o efeito de sentido de formas inventadas, como "fluviante" e "flutual", que ocorrem em Catar feijão, de João Cabral, em vez de "fluvial" e "flutuante": "a pedra dá à frase seu grão mais vivo; obstrui a leitura fluviante, flutual / açula a atenção, isca-a como o risco". O poema diz que pedras aguçam a atenção e faz isso pondo pedras (duas palavras que "não existem"). Para sacar o efeito dessas diversas "pedras", não se precisa estudar gramática, basta ver e comparar as palavras. É claro, no entanto, que saber gramática adequadamente não prejudica ninguém.
Contextos - Por outro lado, estudar a gramática da conjugação verbal na escola seria mostrar, com base em dados, que, considerados diversos contextos e épocas, as formas verbais se distribuem mais ou menos em três formas, que correspondem a três colunas.
As variações do verbo "ir"
As formas verbais se distribuem em mais ou menos três grupos conforme contextos e épocas
1) ESCRITA CULTA 2) FALA CULTA 3) FALA "RURAL"
Eu vou Eu vou Eu vou
Tu vais Você vai / tu vais / tu vai Você vai / tu vai
Ele/a vai Ele/a vai Ele/a vai
Nós vamos Nós vamos / A gente vai Nós / A gente vai
Vós ides Vocês vão Vocês vai
Eles/as vão Eles/as vão Eles/as vai
1. Na primeira coluna, estão as formas verbais das quais se pode dizer, um pouco simplificadamente, que são típicas da escrita culta e de épocas mais antigos (um dos efeitos do emprego de algumas dessas formas, especialmente de "ides", é de "arcaísmo" ou de "solenidade"). A coluna mostra que há, nessa variedade da língua portuguesa, seis formas verbais, uma para cada "pessoa".
2. Na segunda coluna, estão as formas associadas, também um pouco esquematicamente, à fala culta atual. As formas são, como se pode ver, três ou quatro, e não seis. Na escrita, "a gente vai" ocorre bem menos do que "nós vamos". Na fala, é o contrário que se dá (basta ouvir conversas de bar, mesas-redondas, entrevistas, declarações no rádio ou na TV). Sim, de pessoas cultas.
3) Na terceira, estão representadas as formas verbais menos cultas, mais "rurais", talvez caipiras (em sentido técnico), que se ouvem em programas Som Brasil, e, especialmente, nas representações da fala caipira, do homem do campo (basta ver certos quadros de humor). Nesta gramática há somente duas formas verbais (parece inglês).
Misturas - Fazer gramática assim é estudar aspectos da língua como se faz, digamos, em botânica ou anatomia. Constata-se que as plantas e os tecidos são o que são e são como são, independentemente de gosto, predileção ou nojo.
Sofisticando um pouco, pode-se explicar que ocorreu na história da língua e o que está ocorrendo hoje. Por exemplo, explicam-se (em vez de apenas proibir) "misturas" como " a gente vamos", construção que se ouve muito de determinados falantes e que se encontra também nos clássicos. Se "a gente" se refere ao falante e a outra(s) pessoa(s), exatamente como "nós", isto explica a forma verbal associada a esse pronome.
Pode-se fazer gramática sem discutir efeitos de sentido. Ou discutindo, mostrando que tais efeitos têm mais a ver com "estilo" do que com gramática, embora as questões se superponham.
Não imagino que haja professor, com aspas ou sem aspas, que estude na escola a gramática das formas verbais da terceira coluna, ou mesmo da segunda. Mas seria importante que houvesse! Não para ensinar alunos a empregar tais formas, mas para mostrar aspectos de organização da língua falada em diferentes meios sociais e contextos.
Mas existem aulas em que se papagueiam as formas da primeira coluna como se elas fossem empregadas correntemente e como se os efeitos de seu emprego fossem óbvios.
A meu ver, aqui está a questão fundamental, quando se trata de ensino: há uma divisão de tarefas - e de métodos - entre estudar gramática (os objetivos desse tipo de estudo deveriam ser claros, aliás) e a prática, que envolve várias questões, de ler textos adequada e sofiaticadamente. Ler Camões não supõe estudar explicitamente a gramática do português camoniano (com suas passivas características como "o mar que só dos feos focas se navega", por exemplo), mas supõe saber comentar tais estruturas, e, especialmente, ser capaz de fazer paráfrases adequadas. Ler Guimarães Rosa não supõe a construção de uma gramática do "rosês", mas exige a capacidade de verificar em que medida as formas dessa interlíngua produzem os efeitos que produzem. E de explicar a peculiaridade dessa obra exatamente pela relação entre tema, ambientação e linguagem.
Prática - As relações entre gramática, de um lado, e leitura/escrita, de outro, são análogas às que existem entre botânica e paisagismo. Bons botânicos (gramáticos) em geral não são bons paisagistas (leitores, analistas). Podem dispensar essa "prática". Mas paisagistas precisam de algum conhecimento de botânica, pelo menos para decidir quais plantas podem compor jardins em quais lugares sem morrerem. Mas eles sabem que não basta que as plantas não morram...
Uma última observação: o verdadeiro arcaísmo, no último verso do poema, não é a forma verbal "ide". É a colocação do pronome "a" antes do verbo " ir". Uma construção simplesmente padrão seria "Ide lá buscá-la", ou "Ide buscá-la lá", que esta, qualquer um evitaria...
Sírio Possenti -Língua Portugues. Ano 7. nº 77. março 2012
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