sábado, 26 de setembro de 2009

O sentido dos tempos verbais


O imperativo bíblico e o presente histórico rompem a cronologia e expressam  noções diferentes das formas convencionais
Há alguns anos, o exame vestibular da Unicamp trazia, em uma de suas questões, trecho do poeta e cronista Bastos Tigre (1882-1957), autoapelidado D. Xiquote. O fragmento brinca com um uso particular do futuro do presente, o chamado "imperativo bíblico":
Não fartarás – prega o Decálogo e cada homem deixa para amanhã a observância do sétimo mandamento.

citado por Mendes Fradique em sua Gramática Portuguesa pelo Methodo Confuso, 1928)
Todo tempo verbal possui um emprego mais evidente, que define seu uso literal. Por exemplo, a função "normal" do futuro do presente do indicativo é insinuar algo de ocorrência posterior ao momento em que se fala (como em "Domingo irei à praia"). Este é o uso literal.

Por outro lado, há empregos das formas verbais que, embora corretos, são menos frequentes. São usos não literais; expressam noções diferentes das sugeridas pela denominação do tempo verbal. É o caso do decálogo bíblico, que utiliza o futuro do presente com um valor equivalente ao imperativo (modo verbal que expressa ordens, pedidos, súplicas, mandamentos).

Situação semelhante é muito encontrada nos jornais diários. Por exemplo, a Folha de S. Paulo de 2 de março, quinta-feira, trazia a seguinte notícia:
"Vila Isabel vence o Carnaval no Rio"
Esse é um fato bem conhecido dos leitores de jornal. As notícias podem referir-se a fatos presentes ou passados, mas seus títulos quase sempre trazem formas verbais no presente. Afinal, a imprensa diária precisa mostrar notícias "quentes". Daí o recurso ao presente histórico, ou seja, o emprego do tempo verbal presente para referir-se a fatos ocorridos no tempo cronológico passado.

Substitutos do Imperativo
O emprego do modo imperativo pode às vezes parecer muito autoritário. A língua apresenta, então, alguns mecanismos para atenuar esse caráter pesado do imperativo.

Por exemplo, um enunciado como o seguinte pode, em muitas situações, parecer exagerado:
"Busque-me um copo d'água".
Se a intenção não for de humilhar o interlocutor, podemos optar por uma forma mais branda:
"Você me busca um copo d'água?"
 Agora, além da transformação do pedido em uma pergunta, substituímos a forma imperativa "busque" por uma do presente do indicativo, "busca", o que enfraquece o tom autoritário do enunciado. Também é possível utilizar o futuro do pretérito.
"Você me buscaria um copo d'água?"
Às vezes, inclusive, a intenção de ser gentil leva a uma frase negativa:
"Você não me buscaria um copo d'água?"
Menos com a intenção de gentileza, e mais com o intuito de generalizar a ordem, placas ou cartazes – do tipo "Favor não fumar" ou "Não pisar na grama" – empregam formas do infinitivo também em sentido não literal, com o valor de imperativo.

O futuro como hipótese
O futuro é, por natureza, incerto. Diferentemente do passado, que pode ser polêmico, mas foi único, o futuro, por motivos óbvios, se presta a toda sorte de conjecturas. Talvez, por isso, seja comum que os tempos verbais do futuro apareçam empregados com valor, não propriamente temporal, mas antes lógico, para expressar um fato de ocorrência incerta, uma hipótese. O fato é particularmente notável com o futuro do pretérito, sobretudo o composto:
O Comem (Conselho Municipal de Entorpecentes) de Florianópolis (SC) denunciou ontem que o comerciante J.M.C.,34, teria sido torturado nas dependências da 1ª Delegacia de Polícia, no centro da cidade. (Folha de S. Paulo, 30/11/95)
No enunciado, a forma "teria sido" (futuro do pretérito composto do indicativo) é utilizada para apresentar um fato possível, mas ainda não comprovado. Precavido, o jornalista opta pelo futuro do pretérito, que expressa uma hipótese, não algo realmente confirmado.

Apesar de um pouco menos frequente, também o futuro do presente pode expressar fatos incertos:
"Júlia é uma dessas pessoas que escondem a idade. Parece adolescente, mas não terá menos que 45 anos."

Já que "Júlia esconde a idade", o autor da frase não tem realmente certeza quanto à idade correta dela. Assim, usa o futuro do presente, não para designar um fato de ocorrência futura, mas para expressar uma dúvida sobre esse fato.


POR QUE FUTURO DO PRETÉRITO?


Modernamente, o tempo verbal denominado "futuro do pretérito" é mais utilizado em sentido não-literal, para expressar hipóteses. Daí, inclusive, que gramáticas até aproximadamente os anos 60 o denominassem de tempo ou modo "condicional", terminologia, aliás, ainda relativamente corrente.
A denominação futuro do pretérito se afirmou por influência do gramático e filólogo brasileiro Manuel Said Ali (1861-1953). Ele observou que, em sentido literal, esse tempo expressa algo que, em relação a nós, encontra-se no passado, mas é futuro em relação a outra ação ou estado. Confuso? Nem tanto. Veja o exemplo:

"Em 1814, Napoleão foi deposto, mas em 1815 ele voltaria ao poder."

A frase narra dois fatos históricos. O segundo deles, ocorrido em 1815, é passado em relação a nós. Mas é futuro em relação ao primeiro evento, de 1814. Daí o emprego – em sentido literal – da forma "voltaria", no futuro do pretérito, ou seja, como expressão do futuro em relação a um passado anterior.
(Discutindo Língua Portuguesa. Ano 1, nº 5)



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

ENCAIXE PERFEITO


ENCAIXE PERFEITO


Uma das tarefas árduas para um poeta é colocar letra numa música já pronta. Tenho comentado aqui a dificuldade e a importância de um escritor trabalhar com formas fixas. Elas lhe impõem restrições, mas essas restrições acabam por obrigá-lo a façanhas de criatividade – se há talento, claro.
Pois bem: não há forma fixa tão complicada quanto a letra de música. Uma coisa é escrever palavras para serem impressas numa página. Outra é escrever frases para serem cantadas em voz alta, num ritmo que não é dado pelo escritor. A música sugere emoções, induz um tipo diferente de recepção. Um poema na página diz só o que suas palavras dizem. Um poema cantado diz o que dizem as palavras, misturado ao que a música diz de modo mais indireto mas não menos eficaz.
Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha, é um belo exemplo de letra que se encaixou, sem aparente esforço, numa música preexistente. E foi uma letra submissa à música, criada sem que o letrista pudesse alterar a melodia. Se alguém dissesse que a letra foi feita primeiro, e depois musicada, muita gente acreditaria.
MELODIA EXISTENTE
A melodia foi composta por Pixinguinha em 1917 e gravada em forma instrumental em 1928. Em 1936, por sugestão da cantora Heloísa Helena, Braguinha se dispôs a "letrar" a música. No outro dia, ele trouxe a letra pronta. Orlando Silva a gravou em 1937, e o resto, até as duzentas regravações desde então, é História.
A canção vai se abrindo aos poucos. "Meu coração...Não sei por que..." duas frases melódicas idênticas, às quais se sucede uma terceira, em melodia ascendente (Bate feliz...) e uma quarta se ergue triunfal (Quando te vê!...), recriando a emoção do surgimento da amada. Então, melodia e letra valsam uma sucessão de frases e acordes: "E os meus olhos / ficam sorrindo / e pela rua / vão te seguindo..." Um rodopio de felicidade que se amaina aos poucos quando a letra e melodia se recolhem, tímidas, imobilizando-se na constatação grave: "Mas mesmo assim...foges de mim".
Vem uma modulação, ou mudança de tom, iniciando outra sequência (a canção tem estrutura dramática, mesmo não sendo narrativa ou visual). De novo só, o poeta "muda de tom" no pensamento, e embora continue dirigindo-se a Ela, parece falar consigo mesmo: "Ai, se tu soubesses / como sou tão carinhoso / e o muito, muito que te quero, / e como é sincero o meu amor, / eu sei que tu não fugirias mais de mim..." Vejam com que influência essas frases se sucedem na melodia, exprimindo sem esforço com conceito que sintaticamente só se fecha no final: "se tu soubesses, (...) não fugirias". E então o poeta chama, clama, reclama em quatro notas e quatro imperativos ascendentes: "Vem!, Vem! Vem! Veem!..." Seria possível colocar ali uma palavra de quatro sílabas. Braguinha, com simplicidade e nitidez, sentiu a necessidade de um mesmo monossílabo, para corresponder à sílaba e à insistência da melodia.
O quarto "vem" vai meio-tom além daquele "vê" (do "quando te vê" da 1ª estrofe), e o poeta, como quem ultrapassou uma barreira, exige: "Vem sentir o calor / dos lábios meus / à procura dos teus..." Em seguida, letra e música voltam a valsar em acordes sucessivos: "Vem matar / esta paixão / que me devora o coração / e só assim então / serei feliz / bem feliz". A canção termina igualmente numa frase descendente, mas agora é o repouso após o triunfo.
Calado, contemplativo, o poeta permitiu que a melodia arrebatasse suas palavras e liberasse tudo que tinha para dizer.

 
LETRA E MÚSICA

 
Carinhoso é exemplo de como a letra pode acompanhar de perto a emoção da música, dando a impressão de que foram compostas ao mesmo tempo.
Numa canção, letra e música são canais simultâneos de expressão e se influenciam. A música é abstrata; sugere e produz emoções, mas não diz nada diretamente. A letra tem sentido imediato, descreve ações e pensamentos, expõe ideias, evoca imagens.
É comum que a música sugira uma coisa e a letra diga algo diferente. Isso tanto pode ser recurso expressivo como defeito, incapacidade de expressão do(s) autor(es).
Carinhoso mostra que a dificuldade de fazer letra para música já pronta não é a dificuldade técnica de fazer as sílabas poéticas coincidirem com as notas musicais, e sim a de produzir um texto cuja ressonância emotiva esteja de antemão contaminada por elementos externos ao texto. É mais freqüente encontramos letra e música que se toleram do que as que se harmonizam.
(Braulio Tavares – compositor, autor de Contando Histórias em Versos)

O VÍCIO QUE DOI NO OUVIDO


É preciso cuidado para não repetir termos a todo momento nem tomar, por preciosismo, qualquer expressão como viciosa.
(...) A gramática tradicional usa a classificação de vício para agrupar diversos fenômenos diferentes, considerados desvios em relação ao padrão culto da língua, como por exemplo:
ARCAÍSMOUso de termos antiquados ("Encontre, por obséquio, minhas chaves").
AMBIGUIDADEQuando o sentido não fica claro, com enunciado com mais de um sentido ("O pai o filho adora" = quem adora quem?)
BARBARISMOErros no uso das palavras: de pronúncia, grafia, morfologia, semântica e de estrangeirismos ("flamengo", "sombrancelha", "sale em vez de "à venda" ).
CACÓFATOSequência de palavras que provoca o som de uma expressão ridícula ou obscena ("Por razões de Estado").
COLISÃO E HIATOProximidade ou repetição, respectivamente, de consoantes e vogais iguais em uma sequência ("O salário da secretária sempre será pago na sexta-feira").
ECORepetição da mesma terminação em prosa ("O acesso dado ao processo do réu confesso foi um retrocesso jurídico").
PRECIOSISMOLinguagem pretensamente culta.
PLEBEÍSMOUso de gírias ou termos que demonstram falta de instrução ("tipo assim", "a nível de ").
TAUTOLOGIARepetição desnecessária da ideia ("Iphan restaura velho casarão"; "Governo cria novos empregos") ou termo já pronunciado (subir para cima, surpresa inesperada, acabamento final).
SOLECISMODesvios na construção sintática, de concordância, regência e colocação ("Viajar anexo", no sentido de viajar "ao lado de alguém"; "Fazem dias que viajei", contém erro de concordância).

Leonardo Fuhrmann 



 

Quem sou eu

Minha foto
Lins, São Paulo, Brazil
Uma pessoa comum...