segunda-feira, 14 de setembro de 2009

ENCAIXE PERFEITO


ENCAIXE PERFEITO


Uma das tarefas árduas para um poeta é colocar letra numa música já pronta. Tenho comentado aqui a dificuldade e a importância de um escritor trabalhar com formas fixas. Elas lhe impõem restrições, mas essas restrições acabam por obrigá-lo a façanhas de criatividade – se há talento, claro.
Pois bem: não há forma fixa tão complicada quanto a letra de música. Uma coisa é escrever palavras para serem impressas numa página. Outra é escrever frases para serem cantadas em voz alta, num ritmo que não é dado pelo escritor. A música sugere emoções, induz um tipo diferente de recepção. Um poema na página diz só o que suas palavras dizem. Um poema cantado diz o que dizem as palavras, misturado ao que a música diz de modo mais indireto mas não menos eficaz.
Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha, é um belo exemplo de letra que se encaixou, sem aparente esforço, numa música preexistente. E foi uma letra submissa à música, criada sem que o letrista pudesse alterar a melodia. Se alguém dissesse que a letra foi feita primeiro, e depois musicada, muita gente acreditaria.
MELODIA EXISTENTE
A melodia foi composta por Pixinguinha em 1917 e gravada em forma instrumental em 1928. Em 1936, por sugestão da cantora Heloísa Helena, Braguinha se dispôs a "letrar" a música. No outro dia, ele trouxe a letra pronta. Orlando Silva a gravou em 1937, e o resto, até as duzentas regravações desde então, é História.
A canção vai se abrindo aos poucos. "Meu coração...Não sei por que..." duas frases melódicas idênticas, às quais se sucede uma terceira, em melodia ascendente (Bate feliz...) e uma quarta se ergue triunfal (Quando te vê!...), recriando a emoção do surgimento da amada. Então, melodia e letra valsam uma sucessão de frases e acordes: "E os meus olhos / ficam sorrindo / e pela rua / vão te seguindo..." Um rodopio de felicidade que se amaina aos poucos quando a letra e melodia se recolhem, tímidas, imobilizando-se na constatação grave: "Mas mesmo assim...foges de mim".
Vem uma modulação, ou mudança de tom, iniciando outra sequência (a canção tem estrutura dramática, mesmo não sendo narrativa ou visual). De novo só, o poeta "muda de tom" no pensamento, e embora continue dirigindo-se a Ela, parece falar consigo mesmo: "Ai, se tu soubesses / como sou tão carinhoso / e o muito, muito que te quero, / e como é sincero o meu amor, / eu sei que tu não fugirias mais de mim..." Vejam com que influência essas frases se sucedem na melodia, exprimindo sem esforço com conceito que sintaticamente só se fecha no final: "se tu soubesses, (...) não fugirias". E então o poeta chama, clama, reclama em quatro notas e quatro imperativos ascendentes: "Vem!, Vem! Vem! Veem!..." Seria possível colocar ali uma palavra de quatro sílabas. Braguinha, com simplicidade e nitidez, sentiu a necessidade de um mesmo monossílabo, para corresponder à sílaba e à insistência da melodia.
O quarto "vem" vai meio-tom além daquele "vê" (do "quando te vê" da 1ª estrofe), e o poeta, como quem ultrapassou uma barreira, exige: "Vem sentir o calor / dos lábios meus / à procura dos teus..." Em seguida, letra e música voltam a valsar em acordes sucessivos: "Vem matar / esta paixão / que me devora o coração / e só assim então / serei feliz / bem feliz". A canção termina igualmente numa frase descendente, mas agora é o repouso após o triunfo.
Calado, contemplativo, o poeta permitiu que a melodia arrebatasse suas palavras e liberasse tudo que tinha para dizer.

 
LETRA E MÚSICA

 
Carinhoso é exemplo de como a letra pode acompanhar de perto a emoção da música, dando a impressão de que foram compostas ao mesmo tempo.
Numa canção, letra e música são canais simultâneos de expressão e se influenciam. A música é abstrata; sugere e produz emoções, mas não diz nada diretamente. A letra tem sentido imediato, descreve ações e pensamentos, expõe ideias, evoca imagens.
É comum que a música sugira uma coisa e a letra diga algo diferente. Isso tanto pode ser recurso expressivo como defeito, incapacidade de expressão do(s) autor(es).
Carinhoso mostra que a dificuldade de fazer letra para música já pronta não é a dificuldade técnica de fazer as sílabas poéticas coincidirem com as notas musicais, e sim a de produzir um texto cuja ressonância emotiva esteja de antemão contaminada por elementos externos ao texto. É mais freqüente encontramos letra e música que se toleram do que as que se harmonizam.
(Braulio Tavares – compositor, autor de Contando Histórias em Versos)

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