8 JEITOS DE ENTENDER O MUNDO NO FEMININO
Gramática e ideologia se unem quando o assunto é definir a flexão das palavras pelo gênero
(Por Sirio Possenti)
As opiniões mais ou menos bem fundamentadas que circulam a propósito da forma "presidenta" são um bom pretexto para deixar um pouco mais claros alguns fatos sobre a questão do gênero na língua portuguesa. A seguir, em forma de itens, estão algumas afirmações quase isentas de dúvidas, em um tema nada simples.
Como se vê nestas páginas, quem acha que "presidenta" é forma inútil e "todos e todas" e formas assemelhadas são só jogadas ideológicas deveria aceitar facilmente que o chamado masculino não é propriamente masculino, não se refere a seres ou objetos masculinos por algum critério "objetivo". O chamado masculino, em português, não passaria de ausência de marca de feminino. O caso não seria o único na língua. O português também não marca o singular de nomes, adjetivos e artigos. Trata-se de palavras apenas sem marca de plural.
É possível que derivações como a de "presidenta" venham a ser cada vez mais usadas, se cada vez mais houver mulheres executando tais funções. Muitos estranham a forma feminino só por ser pouco usada, o que se deve ao fato de não ter havido mulheres exercendo a função.
1. Nem toda palavra flexiona o gênero
a) Algumas palavras têm formas masculinas e femininas. Outras, não. Nos casos em que existem as duas formas, pode-se tratar o fenômeno como flexão, embora alguns o tratem como derivação. Por exemplo, "menina" é a forma feminina (derivação) de "menino". Mas "tecla" não tem correspondente masculino e "teclado" não tem correspondente feminino.
b) Em diversos casos, há algum tipo de correspondência entre palavras e coisas: por exemplo, existem, no mundo, meninos e meninas, e a língua tem formas que designam cada grupo ou cada membro de cada grupo.
2. Diferentes, mas não derivadas
a) Há casos em que a correspondência entre seres do mundo e palavras masculinas e femininas não é representada na gramática. Homem/mulher, boi/vaca, cavalo/égua, cachorro/cadela são alguns exemplos: as palavras femininas de cada uma dessas duplas referem-se a seres femininos, mas não são derivações das formas masculinas; são completamente diferentes delas.
3. Sem gênero oposto
a) Nem todas as palavras masculinas e femininas têm correlatos machos e fêmeas - elas constituem, na realidade, uma minoria. Basta considerar palavras como muro, tijolo (masculinas) e porta, chave (femininas), entre milhares de outras, em especial as ditas abstratas, como pensamento e intuição.
4. O peso da realidade
a) A existência ( a ocorrência) ou não de femininos de base gramatical, derivados de palavras masculinas, é, em muitos casos, efeito (embora não uniforme), de alguma correspondência de fatos da língua com fatos do mundo. Por exemplo, não haveria a forma parenta se só houvesse parentes masculinos. Por outro lado, o fato de haver algum tipo de distinção no mundo não cria formas gramaticais correspondentes. Emprega-se parenta, mas não tenenta - embora já existam mulheres tenentes. O mesmo vale para sargenta. Os fenômenos gramaticais relativos ao léxico são bastante irregulares.
5. Origem esquecida
a) Há femininos que resultam de derivação, mas sua origem é esquecida. Horta é o feminino de horto (Mattoso Câmara pensa que sim, Bechara também, mas o dicionário Houaiss não registra): horta é um tipo de horto, assim como jarra é um tipo de jarro e barca um tipo de barco. Observe-se que não há, nesser caso, nenhuma relaçlão entre gênero e sexo.
6. Mudança no radical
a) Muitos femininos diferem do masculino só em sua desinência (em -a, na maior parte). Mas um pequeno grupo de palavras femininas (e de plurais) é marcado pela mudança da vogal do radical: horto/horta, porco/porca, sogro/sogra (sogro/sógra, etc.)
7. O peso do contexto
a) A questão gramatical do gênero pode tornar-se socialmente relevante em certas épocas, vir a ser objeto de debate por motivos culturais, políticos, ideológicos. Esse movimento faz com que ocorram construções que não ocorriam ou se generalizem construções pouco usadas.
É por motivos ideológicos (valorização do feminino) que muitos iniciam suas falas com "Boa noite a todos e a todas", "Brasileiros e brasileiras", etc. É também por fundo ideológico similar, e militante, que permitiu que se fizesse a defesa explícita da forma "presidenta". E também por ideologia que surgiu discurso contrário, defendendo que tal forma não é necessária ou inexiste na língua (!) - apesar do registro de dicionários sisudos.
8. Na sintaxe
a) Gênero não diz respeito só a palavras, mas atinge o domínio da sintaxe. Há estudiosos que defendem que a maior garantia de que uma palavra é masculina é ser precedida do artigo "o" (e feminina, se "a"). Poucas palavras são precedidas ora por uma ora por outro artigo, conforme o grupo de falantes: o/a guaraná, o/a alface, etc. Na maioria, nenhma variação é observada. Por isso, esta é garantia até mais sólida do que o sexo ("criança" pode ser menina ou menino, "leão" pode ser leão ou leoa, etc.) ou outro traço do ser. O que mostra que o gênero é questão interna à língua, é arbitrário.
b) Problema surge ao se explicar a concordância de predicados com sujeitos. Como explicar "navegar é preciso", se "navegar" é oração? Deve-se defender que é masculina? Ou enganar o ouvinte, abandonando o fato objetivo, substituindo "navegar" por "navegação' e assim explicar o feminino? e como explicar "hoje faz frio" (e não "fria"), se a oração não tem sujeito, nem oracional? Talvez se deva aceitar a hipótese de que o português marca morfologicamente só o feminino. Mesmo finais em o (menino) não seriam marcas de masculino (tese de Mattoso Câmara, Bechara e John Martin), mas só vogal temática.
(Língua Portuguesa. Ano 5. nº 66.abril/2011)
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