A DESCRIÇÃO QUE ILUMINA
Romance do autor gaúcho que morreu em fevereio mostra como se delineia uma personagem
(Por Luiz Costa Pereira Júnior)
Era um escritor vulcânico, capaz de concluir um texto elegante e consistente minutos depois de solicitado. Moacyr Scliar escreveu mais de 70 livros, traduzidos em 12 idiomas, desde 1962, quando lançou Histórias de um Médico em Formação. A morte, aos 74 anos, em 27 de fevereiro, por falência múltiplas de órgãos após um AVC, abriu um vazio nas letras nacionais. Pois Scliar se revelou um autor sofisticado, capaz de retratar os laços invisíveis entre uma situação social muito específica e os paradoxos mais amplos da existência humana.
Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003 e autor premiado ( o mais recente foi o Jabuti de livro do ano dado a Manual da Paixão Solitária, em 2009), considerava que a formação do estilo resulta sempre de uma combinação de fatores. "Autores e autoras não decidem que espécie de estilo terão. Isto não é o fruto de uma decisão consciente, vai brotanto espontaneamente, como resultado de um background psicológico e cultural, do gênero escolhido e de outros fatores".
Filho de judeus russos, Scliar teve no humanismo, na leveza e na crítica social algumas de suas matrizes de inspiração. A temática judaica o levou a compor A Mulher que Escreveu a Bíblia (1999), romance que recebeu o Prêmio Jabuti 2000.
A trama da obra mostra uma mulher que, ao consultar um ex-historiador que virou terapeuta de vidas passadas, descolbriu ter sido a mais feia e única letrada das 700 mulheres do rei Salomão, no século 10 a.C. Baseado na ideia de que uma mulher teria sido a autora da Bíblia, a obra dosa momentos de escracho e requinte. O trecho a seguir (página 41 do livro) já foi aproveitado em vestibulares e concursos.
A Mulher que Escreveu a Bíblia
A mim pouco importava. Tendo descoberto o mundo da palavra escrita, eu estava feliz, muito feliz (...) Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que uma letra atrai outra, essa afinidade organizando não apenas o texto como a vida, o universo. O que eu via, no pergaminho, quando terminava o trabalho, era um mapa, como os mapas celestes que indicavam a posição das estrelas e planetas, posição essa que não resulta do acaso, mas da composição de misteriosas forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam minha mão quando ela deixava seus sinais sobre o pergaminho. (...) diria a ele que agora minha vida tinha sentido, um significado: feia, eu era, contudo, capaz de criar beleza. Não a falsa beleza que os espelhos enganosamente refletem, mas a verdadeira e duradoura beleza dos textos que eu escrevia, dia após dia, semana após semana - como se estivesse num estado de permanente e deliciosa embiraguez.
1. A frase interrompe uma descrição anterior sobre a condição de vida da personagem e prepara terreno para a digressão da frase seguinte. Tem a função de servir de passagem para o trecho mais decisivo do período para a construção da personagem: a enumeração das razões que constituem seu ato de escrever.
2. As implicações dessa enumeração (colocar letras no pergaminho, associá-las, ver o resultado da associação) mostram a perícia técnica do autor em inserir traços da personalidade da protagonista na descrição de suas tarefas.
3. Não é gratuito que o autor identifique a personagem por sua feiura. Ela é o combustível dramático da personagem, e Scliar reitera o fato de que a mulher feia foi escolhida pela habilidade de criar beleza por escrito. É seu trunfo, a razão que dá visibilidade e sentido à narradora.
4. A descoberta das possibilidades expressivas da escrita é a oportunidade para o autor exercitar o paralelo entre a criação do texto, a harmonização de fatos e falas num escrito, ao mistério do mundo. A física leva à metafísica. O pergaminho leva à reflexão sobre a ordem do universo. O concreto leva ao abstrato, a tese leva ao êxtase.
5. O autor chega à conclusão sobre a personagem que havia sido construída anteiormente pela enumeração das tarefas da escrita. Com habilidade, Scliar estabelece a síntese de elementos que estavam em germe ao longo do trecho.
6. O evidente paralelo entre a Sherazade de As Mil e Uma Noites e a narradora do livro de Scliar - ambas marcadas pela obrigação de narrar infinitamente - deve levar em conta a distância das situações de ambas: a primeira conta histórias para prolongar a própria vida; a segunda desfruta com deleite a tarefa de recolher as histórias que lhe foram atribuídas.
( Língua Portuguesa. Ano 5. nº 66 abril 2011)
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