A BELEZA DOS PÁSSAROS EM VOO (PARTE II)
Rubem Alves
Aves transformadas em mistérios, palavras configuradas como gaiolas.
Tentar descrever os grandes enigmas da vida torna a experiência menos bela.
Desviei-me de uma das mais influentes escolas da Teologia contemporânea que, sob a inspiração da espiritualidade do martírio, só tinha olhos para a coroa de espinhos, para os cravos e para as feridas, e não tinha olhos para a flor.
Assim, abandonei as inspirações éticas e políticas da Teologia - justificação pelas obras - e deixei-me levar pela felicidade estética - justificação pela graça. Alegria para os olhos, alegria para o corpo. Deus, em oposição aos seus adoradores, que fecham os olhos para vê-lo melhor, abre os seus e se alegra. O ato de ver é uma oração. O visível é o espelho onde Deus aparece refletido sob a forma de beleza. Deus é um esteta.
A literatura me chegou sem que eu esperasse, sem que eu preparasse o seu caminho. Chegou-me através de experiências de solidão e sofrimento. A solidão e o sofrimento me fizeram sensível à voz dos poetas. A decisão foi tomada depois de completar quarenta anos: não mais escreveria para os meus pares do mundo acadêmico, filósofos ou teólogos. Escreveria paraa as pessoas comuns. E que outra maneira existe de se comunicar com as pessoas comuns senão simplesmente dizer as palavras que o amor escolhe?
Toda alma é uma música que se toca. Quis muito ser pianista. Fracassei. Não tinha talento. Mas descobri que posso fazer música com palavras. Assim, toco a minha música...Outras pessoas, ouvindo a minha música, podem sentir sua carne reverberando como um instrumento musical. Quando isso acontece, sei que não estou só. A poesia revela a comunhão.
O que faço é tentar pintar com palavras as minhas fantasias - imagens modeladas pelo desejo - diante do assombro que é a vida. Se o Grande Mistério, vez por outra, faz ouvir sua música nos interstícios silenciosos das minhas palavras, isso não é mérito meu. É graça. Esse é o mistério da literatura: a música que se faz ouvir, independentemente das intenções de quem escreve.
Escrevi, faz muitos anos, uma estória para minha filha de quatro anos. Era sobre um Pássaro Encantado e uma Menina que se amavam. O Pássaro era encantado porque não vivia em gaiolas, vinha quando queria, partia quando queria...A Menina sofria com isso, porque amava o Pássaro e queria que ele fosse seu para sempre. Aí ela teve um pensamento perverso: "Se eu prender o Pássaro Encantado numa gaiola, ele nunca mais partirá, e seremos felizes, sem fim..."E foi isso que ela fez.Mas aconteceu o que ela não imaginava: o Pássaro perdeu o encanto. A Menina não sabia que, para ser encantado, o Pássaro precisava voar...
Dei-me conta de que essa estória é uma paróbola da Teologia. Existe sempre a tentação de prender o Pássaro Encantado, o Grande Mistério, em gaiolas de palavras. O poeta é aquele que ama o Pássaro em voo. O poeta voa com ele e vê as terras desconhecidas a que o seu voo leva. Por isso não há nada mais terrível para um poeta que ver um Pássaro engaiolado. Daí que ele se dedique, hereticamente, à tarefa de abrir as portas das gaiolas, para que o Pássaro voe. E é por isso que escrevo: pela alegria de ver o Pássaro em voo.
Somente na velhice nos reencontramos com a infância. Creio que essas coisas que escrevo são uma tentativa de recuperar a felicidade perdida da minha infância. Agora, na velhice, experimento a alegria de ver muitas gaiolas vazias. E a alegria de ver os pássaros em voo. Mas há uma trsiteza. Sinto-me como Ravel, que, ao ver aproximar-se o fim, dizia, num lamento: "Mas há tantas músicas esperando ser escritas!"
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