ANTES DAS PALAVRAS
Discussões sobre os processos mentais que levam uma criança a aprender rapidamente a língua materna dividem cientistas: alguns acreditam que essa capacidade é inata, outros afirmam que é determinada por relacionamentos sociais e influências culturais.
A pediatra Ghislaine Dehaene-Lambertz, do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, demonstrou, há alguns anos, que bebês de 3 meses já reconhecem frases simples e reagem a elas. Mesmo sem maturidade para a fala, regiões cerebrais semelhantes às dos adultos para o processamento da linguagem são ativadas nessas situações. A conclusão da pesquisadora reforça o que parece, a princípio, comprovar algo que muitos estudiosos defendem: o cérebro de crianças bem pequenas já estaria programado para o futuro desenvolvimento da linguagem. Podemos pensar, portanto, que não basta compreender a forma como um bebê age para apreender processos complexos como a aquisição da fala, é preciso considerar outros aspectos.
O linguista americano Noam chomsky foi um dos primeiros a discordar, no fim da década de 50, do que propumha o behaviorismo (do inglês behavior, comportamento). Segundo essa abordagem, para entender o funcionamento mental era necessário concentrar-se totalmente no comportamento manifesto, ou seja, nas reações apresentadas quando a pessoa era exposta a certos estímulos vindos do ambiente. A mente seria uma "caixa-preta", o que tornaria impossível compreender os processos ocorridos ali secretamente.
Essa forma de pensar dominava, na época, extensa parte das pesquisas psicológicas nos Estados Unidos. Em seu livro Verbal behavior (Comportamento verbal, lançado no Brasil em 1959, pela Cultrix), o principal represetante do behaviorismo, Burrhus Freric Skinner (1904-1990), postula que a linguagem só poderia ser estudada como sistema de reação a estímulos. Chomsky, por sua vez, sugeriu que a caixa-preta fosse aberta. Sua resenha da obra de Skinner, publicada na revista Language em 1959, impulsionou o surgimento de uma nova linha de pesquisa. A ordem era recorrer a métodos psicológicos para reconhecer o funcionamento mental. Assim, Chomsky, professor de linguística desde 1961 do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), incluiu o estudo da linguagem na área da psicologia. A pergunta de real interesse, segundo ele, seria: "De que forma a língua é processada pelo cérebro?".
Como poceria ser possível que uma criança aprendesse alemão, suaíli ou filipino em poucos meses, apenas por simples reação a estímulos, sem que seus pais tivessem de despender grande esforço dando-lhe aulas de gramática? A suposição de Chomsky é a de que, por trás de tal desempenho haveria uma espécie de processador, um "órgão da linguagem", que utilizaria regras como um programa de computador, ajudando a formar frases concretas.
CHAVE NEURAL
Assim que compreende, incoscientemente, que as orações em alemão sempre precisam de sujeito, a criança é capaz de construir corretamente infinitas frases como: Ich aß süß ("Eu comi doce"). Já a brasileira aprende rapidamente que não há problema em deixar o sujeito "eu" de fora: "Comi doce". Hoje estamos acostumados à ideia de que o cérebro processa informações de forma semelhante a um computador e trabalha sob determinadas normas. No final dos anos 50, essa visão era revolucionária. E Chomsky ainda acrescentou que muitas dessas regras seriam inatas: ao nascer, todo ser humano já disporia de conhecimento gramatical abstrato. De fato, Chomsky e colegas elaboraram mais tarde uma teoria que explicava essa questão do sujeito na frase: tanto a criança alemã quanto a brasileira já "saberiam" desde o nascimento que existe algo como a posição do sujeito. Haveria, então, uma espécie de "chave neural comutadora" movida para a posição "sujeito-necessário" ou "sujeito-possível". E esse dispositivo seria inato. Com esse modelo, Chomsky conseguiu explicar por que as crianças aprendem a língua materna tão depressa; segundo suas suposições, o processo de direcionar um mecanismo preexistente para um outro lado ocorreria rapidamente.
Como nos adultos a chave já está em determinada posição - ou seja, os parâmetros da língua estão fixos - é mais difícil para eles compreender as regras de uma língua estrangeira, enquanto para os pequenos esse processo parece bastante "natural". A linguística de Chomsky, a chamada "gramática gerativa", pode ser considerada também uma teoria sobre a aquisição da linguagem. Em resumo, ela transformou completamente grande parte da linguística, a ponto de muitos linguistas se considerarem mais cientistas naturais do que cientistas humanos, uma vez que se propõem descrever o aparelho fonador e seu funcionamento com o auxílio de modelos matemáticos e algoritmos. Além disso, linguistas que usam estritamente os preceitos de Chomsky não tratam da fala e da comunicação. Eles estudam a competência, o conhecimento linguístico fundamental, ou seja, um objeto abstrato, que se encontra guardado nas profundezas da caixa-preta.
O psicólogo Michael Tomasello, porém, defende uma visão completamente diferente. Diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária em Leipzig e codiretor do Centro de Pesquisa de Primatas em Göttingen, ambos na Alemanha, ele estuda homens e macacos. Com base na comparação entre as diferentes espécies, Tomasello desenvolveu uma teoria sobre a aquisição da linguagem pelos humanos que parte de princípios bastante diversos dos de Chomsky. Em vez de pesquisar na mente humana a competência linguística inata que nos diferencia de todos os outros seres, ele estudo o uso da língua - sua performance, tão negligenciada por Chomsky. No desempenho da língua, poderia ser encontrado o porquê de nossa espécie ser tão talentosa para línguas - e a explicação sobre como toda criança aprende a língua materna com tanta rapidez e segurança. Segundo Tomasello, o que nos distingue dos animais nesse quesito é nossa capacidade de nos colocar no lugar do outro e compreender intenções e sentimentos alheios. Desse modo, nos relacionamos de forma comunicativa: "lemos" a mente do outro e interpretamos seus desejos.
É exatamente isso que motiva uma criança a decifrar os sons estranhos que saem da boca da mãe e do pai: "O que eles querem me dizer? E o que eu posso fazer para que eles me compreendam?". Tomasello não contesta o fato de que deve haver uma estrutura básica biológica para que se possa lidar com a linguagem. Segundo ele, no entanto, a força motriz durante o aprendizado de uma língua - e sua trnasmissão para a geração seguinte - é a cultura e não a natureza: o ato comunicativo, não os genes.
Tomasello tem também uma visão diferente da de Chomsky no que concerne ao núcleo da linguagem. Enquanto o linguista do MIT vê o sistema de regras da gramática como centro, para o psicólogo de Leipzig o cerne está no conteúdo simbólico. Os homens se comunicam na medida em que trocam sinais significativos. Assim também surgiu a gramática na história da evolução - e não o contrário. A visão da maneira como a espécie humana chegou à linguagem marca também a teoria de Tomasello sobre de que forma cada criança aprende a língua materna. Diferentemente de Chomsky, ele não parte do pressuposto de que todas as pessoas são equipadas com a mesma gramática universal e que, durante o aprendizado, as criaças têm de trilhar o caminho até um conjunto concreto de regras - seja alemã, japonês ou outro qualquer. Michael Tomasello supõe que o processo de aprendizado seja muito mais simples. Segundo sua teoria, as crianças brasileiras, por exemplo, ouvem algumas vezes frases do tipo "Comi doce", reconhecem então um padrão e concluem: "Ah, então é assim que se fala!". Regras abstratas são derivadas do uso concreto da língua, e sai vencedora a construção mais eficiente para a comunicação - e, quase sempre, a mais correta gramaticalmente.
O argumento principal de Tomasello para tal teoria é o fato de que as crianças usam regras especiais; elas dizem, por exemplo, "Au-au" em vez de "Agora eu quero brincar com o cachorro de pelúcia". Tais expressões servem para a comunicação, pois agindo assim os pequenos frequentemente conseguem o que querem. Mas, na opinião de vários pesquisadores, não se encaixam no sistema de regras abstratas, que, segundo Noam Chomsky, é inato. Como se explica então que, durante a aquisição da língua, as crianças primeiro façam esse desvio po uma "não gramática"? Isso só se explica se não partirmos do pressuposto das regras inatas, diz Michael Tomaselloo, mas se considerarmos o sentido cultural da língua: a comunicação.
Quem tem razão, afinal? "Hoje ninguém mais discute que, quando tratamos da linguagem, estamos tratando também de habilidades inatas", afirma o lingúista Daniel Büring, da Universidsade da Califórnia em Los Angeles. No entanto, outras questões, como o que acontece durante o processo de aquisição da linguagem ou se foram os genes ou o ambiente que levaram nossa espécie a falar, ainda são assunto de discussão.
LÍNGUA MATERNA
Para Chomsky, as crianças têm um "órgão da linguagem", enquanto na opinião do linguista de Leipzig Michael Tomasello o que nos permite falar é o constante exercício de nos colocar no lugar do outro, compreendê-lo e interpretar seus desejos. Já para pesquisadores americanos da área de psicolinguística, como Jenny Saffran e Peter Jusczyk, o que conta é o aprendizado estatístico da língua. Segundo eles, de início o que o bebê escuta são apenas sons encadeados; o primeiro passo em direção à linguagem é isolá-los em palavras e depois lhes conferir sentidos. Atualmente estão em curso vários experimentos científicos para investigar a aquisição da linguagem cujo objetivo é verificar a predisposição de bebês para reconhecer a voz materna. Para isso, a criança é exposta a gravações de vozes em várias línguas.
(Mente Cérebro. Ano XVIII. nº214)