segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

LEITURA ALÉM DA LÍNGUA
Muitos elementos constituem a possibilidade de leitura de um bom texto
Marcela Franco Fossey - Doutora de Linguística na Unicamp

Em geral, quando lemos um texto, duas coisas podem acontecer: não entendemos o que ele "quis dizer" ou entendemos - e nesse caso, constumamos creditar o entendimento ao nosso conhecimento da língua.
Nas linhas a seguir, nosso objetivo é questionar a concepção de leitura como sendo um processo de decodificação de significados contidos na língua, e mostrar que os textos se constituem de muitos outros elementos. Para ler adequadamente um texto, é preciso mais do que apenas saber português (ou inglês, ou alemão, ou chinês...). Significa dizer que o texto é composto de muitos ingredientes que constituem os sentidos que ele "suporta": além da língua, modos de circulação, suporte material, configuração cultural, autores, leitores. Tais ingredientes não são acessórios ou secundários, mas centrais para a compreensão do que lemos no nosso dia a dia. Há, enfim, um quadro interativo que precisamos levar em conta - o que, na verdade, já fazemos de naneira incosciente - no momento da leitura.
Depósito - As diversas teorias do texto e do discurso propõem conceitos que nos ajudam a lidar com esse quadro interativo. Conceitos como o de enunciação, dialogismo, intextualidade, interdiscursividade, só para citar alguns, são centrais nesta abordagem que privilegia o caráter predominantemente aberto dos textos.
Parece importante ressaltar, porém, que defender que os textos não são uma espécie de depósito de um único significado, que estaria contido apenas na sua materialidade linguística, não significa defender, implicitamente, que todas as leituras são válidas ou um texto não "tem" sentido. Se há quem acredite que o bom leitor é o que consegue resgatar o sentido de um texto (que estaria depositado nele), no outro extremo há os que delegam aos leitores todo o processo de significação (como se não houvesse nenhum sentido "no" texto). No entanto, a materialidade textual, em todas as suas dimensões, como todos os seus ingredientes, impõe limites às interpretações possíveis. Assim, se para um livro, um poema, um desenho animado não há uma única leitura possível, também não podemos supor que existem milhares de possibilidade de leitura.
Sentidos veiculados - Aqui propomos algo que fica  de certa forma no meio do caminho: o sentido de um texto não está nem só na língua, nem só nos leitores - e nem na intenção de seu autor. Os sentidos veiculados por um texto emergem da língua e dos leitores, e também da sua organização textual, dos seus modos de circulação, etc.
Trabalharemos com a noção de "cena de enunciação", tal como proposta por Dominique Maingueneau em Análise de Textos de Comunicação (1998, tradução de Cecília P. De Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Editora Cortez, 2004) e Cenas de Enunciação (Curitiba: Criar Edições, 2006). Trata-se de uma proposta de tratamento dos textos que, em boa medida, dá conta de explicitar muitos dos processos envolvidos no momento da leitura. Vejamos com mais cuidado do que se trata.
Quando temos um texto nas mãos, devemos ser capazes de identificar a qual tipo de discurso ele está associado. Se recebemos um panfleto na rua, sabemos  dizer se se trata de um panfleto religioso, político, publicitário, etc. Ao definir também como somos interpelados diante desse material: como uma pessoa religiosa, um cidadão, um consumidor. Maingueneau chama a isso de "cena englobante".
Mas, além dos tipos de discurso, os textos estão submetidos a restrições que os gêneros impõem. Fala-se, então, em "cena genérica", que diz respeito aos gêneros de discurso (reportagem, sermão, panfleto, poema...). A noção de "gênero discursivo" está em boa medida associada às condições de produção dos discursos e tal categorização apoia-se em critérios bastante heterogêneos (tipo de conteúdo, organização textual, modo de circulação, etc.).
Relações - Há uma relação de restrição entre cena englobante e genérica. Nem todos os tipos de discurso podem se materializar emm todos os gêneros: o discurso científico, por exemplo, nunca é veiculado na forma de um poema ou de uma novela. Esses são gêneros tipicamente literários. Espera-se que as "descobertas" sejam comunicadas na forma de um paper que seja publicado em uma revista especializada, ou de um abstract nos anais de um congresso, ou de uma palestra em um encontro de especialistas...
Muitos discursos se restringem a essas duas cenas. Mas há casos em que uma terceira cena pode intervir: a "cenografia". Podemos dizer que a cenografia é o lugar onde o texto se torna único. Por exemplo, a canção Bye Bye Brasil, de Robberto Monescal e Chico Buarque, feita para o filme homônimo de 1979 de Cacá Diegues, tem cenografia muito interessante, essencial para os sentidos que a música suporta: o que ouvimos é um aventureiro contando suas perambulações pelo Norte do país a sua namorada, em um orelhão publico. Assim, sua cena englobante é a das expressões artísticas/musicais, sua cena genérica é a da canção, e sua cenografia a de uma conversa em um orelhão.
Podemos concluir que a música é um diálogo em um telefone público a partir de indícios (bastante explícitos, na verdade) como os versos:
"Baby, bye!Bye" 
 Abraços na mãe e no pai 
 Eu acho que vou desligar 
 As fichas já vão terminar..."
Além disso, há uma estruturação típica de um diálogo em que só temos acesso à fala de um dos intelocutores. E o que esse interlocuotr diz são coisas típicas de um viajante, relatos esparsos de suas aventuras ou do momento específico em que ocorre a conversa.
"Pintou uma chance legal
Um lance lá na capital
Nem tem que ter ginasial"
ou
"Tem um japonês trás de mim
eu vou dar um pulo em Manaus
Aqui tá quarenta e dois graus..."
Mambembe - Outro aspecto relevante é a própria melodia, que especialmente na última estrofe fica mais acelerada, quando as últimas fichas caem. É interessante que o último verso ("O sol nunca mais vai se pôr...") acaba repentinamente, assim como uma conversa no orelhão de verdade, não há tempo para uma despedida formal.
Ademais, a música dialoga como o filme de que é tema: em linhas gerais, Bye Bye Brasil é um filme que narra as aventuras de uma trupe de atores mambembes pelo Norte e Nordeste do Brasil na década de 70, época em que estava em andamento o projeto de modernização nacional implementado pelos militares. A caravana Rolidei (de Holiday, feriado em inglês) tenta sobreviver ao processo de globalização, já que precisa disputar com as novas tecnologias que tomam o lugar das antigas formas de diversão. A música de Chico e Menescal enuncia o cenário encontrado pela trupe mambembe, mas na voz de um viajante conversando com sua namorada.
Só nos dando conta disso - de que a letra da música se faz passar por um diálogo entre namorados em um orelhão, do qual sabemos só o que um deles diz (não sabemos o que a namorada do outro lado da linha está dizendo, embora possamos supor uma bronca quando ouvimos "Oh tenha dó de mim") - é que ela faz sentido. Senão, como aceitar um texto tão "sem coesão":
"Oi coração
Não dá pra falar muito não
Espera passar o avião
Assim que o inverno passar
eu acho qye vou te buscar
Aqui tá fazendo calor
Deu pane no ventilador
Já tem fliperama em Macau
Tomei a costeira em Belém do Pará
Puseram uma usina no mar
talvez fique ruim para pescar
Meu amor..."
Diálogo - No entanto, se lemos essa música como diálogo que ela simula ser, não temos nais um texto sem nexo, sem coesão, mas uma grande sacada, típica dos grandes escritores. Assim, essa cenografia se legitima na medida em que o texto progride, ao mesmo tempo em que ela é legitimadora desses enunciados. Nas palavras de Maingueneau, "para que uma cenografia faça sentido, é preciso que esteja em harmonia não apenas com os próprios conteúdos que sustenta, mas também com a conjutura na qual intervém" (2006:125).
Esta análise nos serve para chamar a atenção para aspectos muitas vezes negligenciados quando se fala em leitura em sala de aula. Frequentemente, as práticas de leitura consideram o texto só dos pontos de vista do conteúdo. Ao encarar os textos como sendo compostos por uma "cena de enunciação", podemos perceber que há muitos outros elementos em jogo nos processos de significação. Ainda que uma "competência llinguística" seja importante, sem nos dar conta dos outros aspectos que compõem a canção analisada (o que vale para qualquer texto) - os gêneros envolvidos, um momento histórico, um filme como pano de fundo - fica complicado (para não dizer impossível!) entender adequadamente um texto.
(Língua Portugues. Ano5 nº 63 jan.2011)

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