quarta-feira, 2 de março de 2011

SOBRE A MORTE E O MORRER
Os que ficam têm de se haver com a culpa de sobreviver e com o lento processo de deixar partir quem já se despediu de nós

Diante da morte, esta mestra absoluta, é preciso ter algo a dizer. O cavaleiro medieval que joga xadrez com a morte em O sétimo selo (Ingmar Bergman, 1956) não quer dizer nada para a morte, mas dizer algo no tempo que resta. O morrer é uma coisa, a morte é outra. Morrer é saber que a morte existe e ainda assim viver. Muita gente faz essa definição prática ao afirmar: não tenho medo da morte, tenho medo de sofrer, tenho receio de deixar "as coisas em aberto", ou seja, tenho medo do processo de morrer. É isso que Lacan chamou de segunda morte, por contraste com a primeira, que seria o fim da vida.
Em Sobre a morte e o morrer (Martins Fontes) Elisabeth Kübler-Ross descreve cinco fases regulares do morrer: 1) negação ou isolamento; 2) cólera ou raiva; 3) negociação ou barganha; 4) depressão ou tristeza e, finalmente, a 5) aceitação. Esta sequência é confirmada para perdas em geral. Vale para dissolução amorosa, destruição familiar, bancarrota financeira, desatre ecológico, degradação moral, perda de partes e formas de nosso corpo. Inclui até mesmo a substituição da imagem que temos de nós mesmos ao longo da vida, para a qual cada vez temos de fazer o luto. As cinco fases foram descritas com base no acompanhamento de pacientes terminais, e um dos motivos para controvérsia em torno da quinta etapa é que até então o processo parece ocorrer de forma simétrica tanto para aquele que se vai quanto para os que ficam. Na última fase ocorre uma dissimetria. Os que ficam têm de se haver com a culpa de sobreviver  e com o lento processo de deixar partir quem já se despediu de nós. O processo terminará com a incorpporação simbólica daquele que se foi e que passará a fazer parte de nós, não apenas em nossa lembrança ou saudade, mas de forma integrada, ali onde nem mesmo sabemos que está. Será a parte essencialmente esquecida, e talvez a mais importante.
No filme Biutiful (2010), dirigido por Alejandro Iñárritu, encontramos um homem, a quem restam dois meses de vida, nos quais tem de "colocar as coisas em ordem". E não se trata de cuidar de assuntos práticos, como se a vida fosse se resolver ao modo de uma equação com suas variáveis. Essa dimensão, aliás, é "magicamente resolvida" quando ele se didica a dar os poucos passos que faltam em sua relação com a própria vida. No filme Além da vida (2010), de Clint Eastwood, também em cartaz, encontramos a experiência de quase morte, uma referência "à vida como ela vem sendo". Quase morte por um tsunami, quase morte que reage a pergunta do irmão gêmeo sobrevivente, quase morte daquele que vive nas imediações dos que se foram. É esta quase morte que aparece também no filme A janela (2008) de Carlos Sorin, no qual um ancião aguarda a chegada do filho. Preso à cama, refaz um sonho inconcluído de infância. São filmes sobre a estrutura irônica da vida, ou seja, sobre como pode haver tanto sentido na falta de sentido. A fase zero do morrer, fazendo um acréscimo a Klüber-Ross. Se a vida é uma história, os últimos capítulos decidem tudo. Sempre achei que a síntese máxima dessa ideia está nas últimas palavras de Sócrates, o inventor da ironia filosófica: "Não podemos esquecer que devemos um galo a Asclépio". Moral da história: depois de beber cicuta e saber que os remédios nada adiantariam, ainda assim, era momento de agradecer ao deus da medicina e à vida como viagem realizada.
(Christian Ingo Lenz Dunker . Mente e Cérebro. Ano XVIII. nº 218)

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