SIMBÓLICA COINCIDÊNCIA
Como personagem ou escritor Ivan Illich estimulou o debate acerca do poder médico
O escritor russo Leon Tolstoi (1828-1910), cujo centenário foi recentemente lembrado, deixou uma notável obra (que inclui os clássicos Ana Karenina e Guerra e Paz) e a lembrança de uma figura lendária. O autor era de família nobre e rica; mas, depois de uma juventude boêmia, mudou de vida, rejeitou a riqueza, o poder do Estado, a religião; tornou-se pacifista, vestia-se como camponês e criou várias escolas para crianças pobres. E era contestador. Disso dá testemunho A morte de Ivan Illich (1886), que muitos críticos consideram a melhor novela já escrita. Em uma centena de páginas é narrada uma hisória curta e dilacerante, capaz de comover o mais indiferente dos leitores. O protagonista Ivan Illich, um arrogante juiz, adoece aos 45 anos de grave enfermidade que desencadeia um verdadiero calvário. Descobre que não pode contar com o apoio dos amigos, da família, dos médicos. Uma das cenas mais pungentes é aquela em que consulta um famoso profissional que o trata com a mesma impaciência e o mesmo autoritarismo que caracterizavam a atuação do próprio Ivan Illich no tribunal:
"Colocou o dinheiro da consulta sobre a mesa e perguntou:
-Nós, os doentes, sem dúvida muitas vezes fazemos perguntas inadequadas. Mas diga-me, de modo geral, estes sintomas lhe parecem graves ou não?
O médico olhou-o severamente por cima dos óculos, como se dissesse: 'Pedimos ao réu que se atenha a responder o que lhe foi perguntado ou serei obrigado a fazer com que o retirem da sala'.
-Eu já lhe disse tudo o que julgava necessário. Os exames devem dar mais detalhes.
E mostrou-lhe a porta".
Agora vejam a coincidência: em 1926, 40 anos depois da publicação da novela, nascia, em Viena, alguém que viria a escrever livros famosos. Ivan Illich - seria o nome uma homenagem ao personagem de Tolstói? Não. Mais provavelmente evocava o pai, o croata Ivan Peter Illich. A mãe era judia, o que o obrigou a fugir do nazismo. Foi para a Itália, estudou ciências naturais e física, mas optou pela filosofia e pela teologia, ordenando-se sacerdote. Mudou-se para os Estados Unidos, depois para Porto Rico e acabou radicando-se em Cuernavaca, no México, onde fundou o Centro Internacional de Documentação (Cidoc), um polo da teologia de libertação, reprovado inclusive pela Igreja, o que faz Illich abandonar o sacerdócio. Tornou-se conhecido por obras polêmicas como Sociedade sem escolas (1971), na qual reprova o sistema educacional e defende a autoaprendizagem, e, principalmente, Nêmese médica (1976). O nome alude à deusa grega da vingança, aquela que pune os culpados da húbris, ou seja, da arrogância diante dos deuses. Esse pecado, segundo Illich, é cometido pela medicina, que, por meio da medicalização, se apossa da vida das pessoas, controlando-as por meio da tecnologia e dos medicamentos. É uma espécie de iatrogenia ( do grego iatros, médico), ou seja, doenças resultantes da própria medicina, que, neste caso, ultrapassa os limites do caso clínico, individual, para envolver a sociedade. "O estabelecimento médico tornou-se uma ameaça maior à saúde", diz a frase inicial da obra. Não era mera retórica; Ivan Illich acreditava em suas próprias ideias; tanto que, quando adoecedu de câncer que viria a matá-lo, recusou o tratamento convencional e preferiu cuidar de si próprio, até sua morte, em 2002. Tais posições, que podem parecer exageradas, tiveram o mérito de estimular o debate sobre o poder médico. Provavelmente o Ivan Illich de Tolstoi se mostraria muito grato ao Ivan Illich polemista.
(Moacyr Scliar)
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